segunda-feira, 24 de maio de 2010

Mussulo


Por apenas 500Kz há um monte de marmanjos que vão brigar para vos poderem levar no seu barco até ao paraíso. 'Chefinho vem aqui', 'Chefia olha esse', 'Pai grande tem este aqui' dizem eles enquanto apontam para os seus barcos. Escolhemos um aleatoriamente e lá vamos nós a voar sobre as águas até ao Mussulo...
Apesar de já ser inverno e estar cada vez mais frio (pelo menos a acreditar no que dizem os angolanos) estão uns 30 graus, um sol de queimar pretos, a areia consegue grelhar os pés de qualquer um que se aventure a ir dar um passeiozinho descalço (sei-o por experiencia própria) e a água é quente.
Um sitio espetacular onde certamente irei passar muitos fins de semana invernosos com a minha Tini.
Ficam as fotos, de apenas um pequeno pedaço do Mussulo, no álbum:

Bernardo.

domingo, 16 de maio de 2010

Conduzir em Luanda



Agora que já conduzo há umas três semanas, tenho 600Km percorridos em Luanda e devo ser detentor do recorde de "mais longa duração de um veículo (em África) sem levar um 'jeitinho na chapa'" aprendi umas regras básicas de condução que aqui deixo, pode ser que venham a ser úteis a alguém.

Regra nº 1 - Faixas de rodagem:

Se a estrada tiver mais do que uma faixa deve-se conduzir sempre na faixa mais à esquerda, a da direita serve apenas para ultrapassar.
Listo de seguida algumas coisas menos agradáveis que é mais provavel que aconteçam a quem anda pela direita por mais do que o tempo estritamente necessário a uma ultrapassagem:
- A bófia manda parar apenas aqueles que andam na faixa da direita. Os policias estão sempre na berma ou no passeio e como qualquer outra pessoa com o juízinho todo, não gostam de arriscar a vida, como tal, não vão à terceira faixa buscar um gajo e pedir-lhe para encostar à berma. Assim, se conduzirmos sempre pela esquerda só somos apanhados nas estradas de apenas uma faixa
- Os candongueiros encostam à berma para carregar (e de que maneira) e descarregar pessoas. Como qualquer outro condutor de Luanda ou não tem piscas ou não sabe para que servem, e arrancam sempre sem olhar se vem alguém. Têm dois motivos para não olhar, primeiro têm prioridade (a regra nº 2 é a das prioridades), segundo, se ninguém anda na faixa da direita e não qual o interesse em perder tempo a olhar?
Num percurso de menos de 10Km em que circulei pela faixa da direita quase me entraram três iáces pela porta do passageiro.
- O pessoal que quer passar um outro veículo, que vá à sua frente na faixa da esquerda, tem que mudar para a faixa da direita, se vocês calharem de estar lá azar... quem vai ultrapassar tem prioridade e muda de faixa na mesma, claro que isto acontece sem pisca e sem olhar, o mais provável até, é que o carro não tenha espelhos (aqui, para além de auto-rádios roubam espelhos, pneus suplentes, centralinas, piscas, vidros, etc.).
No mesmo percurso em que quase levei com três iáces em cima tive que me desviar de dois ultrapassadores porque apesar de eu estar lá eles sabiam que eu me ia desviar, quem anda a engonhar na faixa da direita tem mais é que se desviar para quem quer passar os que vão na faixa da esquerda.

Regra nº 2 - Prioridade:

A estrada é de todos e como tal todos têm prioridade, ninguém é mais importante que os outros.
Aqui não interessa quem vem da esquerda ou da direita, se está a sair de um estacionamento ou a entrar numa rotunda, se tem um stop ou se entra numa auto-estrada, quem vai a conduzir tem sempre prioridade e quem meter a frente primeiro é que passa primeiro, o outro tem que parar caramba. Não há regra mais simples que esta.

Regra nº 3 - Cedência de passagem:

Cedência de quê? Mas se tenho prioridade passo eu como é lógico. 
Aqui ninguém dá um centímetro para outro passar.
Mas então como se vira à esquerda?
Esperar que alguém pare para vocês passarem é irracional porque ninguém vai parar, e esperar que não venha veículo nenhum é sinónimo de esperar até à manhã seguinte. Assim quando uma pessoa tem que virar à esquerda ou entrar numa estrada principal e estão sempre a passar veículos tem que ir metendo a frente aos poucos até obrigar alguém a parar. Se tiver que cruzar mais do que uma faixa tem que ir metendo devagar a frente na próxima faixa até obrigar outro a parar e assim sucessivamente até conseguir passar.

Para ilustrar ainda mais a regra da cedência de passagem suponhamos a seguinte situação:
Estamos numa fila interminável e chegamos a um cruzamento onde quem vem na estrada perpendicular à nossa já não consegue passar, apesar de terem a via deles completamente desobstruída, porque o veículo à nossa frente lhes impede a passagem. Se aquele que está à nossa frente avançar 1m o que devemos fazer? Ficar onde estamos para que os outros possam passar (não vão para o mesmo lado que nós e a nossa fila contínua parada), ou avançar 1m e passamos a ser nós a impedir a passagem dos outros carros? 
Vejamos como pensa o condutor de Luanda:
1 - Eu tenho prioridade.
2 - Fica a faltar menos 1m para chegar ao meu destino.
3 - Eles não são mais do que eu, se eu vou passar aqui as próximas duas horas vamos todos passar aqui as próximas duas horas.

A decisão é óbvia. Ninguém fica parado quando pode avançar 1m, até que fosse só 1cm avançava-se na mesma, mas que raio de pergunta parva, qualquer dia vamos a ver e até se vai parar para os outros passarem, não?

Regra nº 4 - Passadeiras:

Na aproximação a uma passadeira com pessoas à espera para passar acelera-se sempre, não lhes vá dar a ideia de passar mesmo e termos que parar, onde é que já se viu!

Regra nº 5 - Bermas:

As bermas servem para ultrapassar um veiculo que esteja ultrapassar outro ou alguém que vá na faixa da direita a engonhar.

Estas são apenas as regras mais básicas que todos os Luandenses (estrangeiros que conduzem em Luanda incluídos) nascem a saber. As restantes aprendem-se com a experiência.

Até à próxima,
Bernardo.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Angola, terra de contrastes

Manhã:

Hoje, um colega meu (angolano) aleijou-se e eu levei-o a um 'centro de saúde' de Luanda.
Saímos da estrada alcatroada seguindo umas indicações que nos tinham dado para chegar ao centro de saúde. No meio de ruas de terra vermelha, entre barracas de toda a espécie e feitio com muito lixo na berma da estrada, lá estava ele, uma barraca um pouco melhor que as restantes mas ainda assim não passava de umas paredes velhas e esburacadas e um telhado de Zinco, um espaço pequeno... mais pequeno do que qualquer centro de saúde que alguma vez tenha visto.
Lá fora o cheiro do lixo era demasiadamente intenso, lá dentro a luz era fraca, o chão sujo, com terra em cima dos ajulejos brancos, bancos de lata todos amolgados mais velhos do que eu e gente, muita gente, a cheirar a suor... Era um sitio em que, atrevo-me dizer, pelo aspecto do que se via da porta, se fosse uma casa de banho pública (em Portugal), eu teria relutância em entrar.
Lá me sentei num banco, com a companhia de uma centena de pessoas enquanto esperava que assistissem o meu colega. Ele entrou na salinha de 'curativos' e passado um pouco entra também uma senhora que pressionava um pano ensaguentado contra uma ferida na cabeça. Eu continuava sentado e só conseguia pensar 'Com as condições que têm aqui espero bem nunca precisar de ser assistido num centro de saúde'.
Passado um pouco lá aparece o meu colega já com um penso e diz-me que pediram para eu ir lá. Era preciso pagar a linha com que o tinham cosido. Ele já tinha pago 400Kz mas não chegava, faltavam 50 da linha e 200 da anestesía mais a vacina, eu ainda teria que pagar mais 450Kz.
Eu pedi que lhe devolvessem os 400Kz pois queria pagar a despesa toda. Dei 1000Kz e ficou pago.
Entretanto passaram uma receita com os comprimidos que o rapaz havia de tomar. Para quem não sabe uma receita nesta terra não passa de um papel de um daqueles blocos pequenos, que todos nós temos numa qualquer gaveta, mas em que cada página foi carimbada.
É apenas uma folha branca com um carimbo onde a enfermeira escreve o nome dos medicamentos a comprar. E perguntam vocês, 'Enfermeira? mas não é preciso ser médico para passar receitas?'.
Qual quê? Se a senhora algum dia estudou para enfermeira já era uma sorte, muito provavelmente aprendeu tudo o que sabe a trabalhar ali no centro de saúde. Ela sabia o nome dos medicamentos que queria passar mas receitou 21 comprimidos para tomar de 12 em 12h durante 7 dias.
Eu disse-lhe 'Se toma 2 por dia durante sete dias dá menos que 21, têm que ser 3 por dia para dar 21.' e ela decidiu alterar a receita para 8 em 8h.
Enquanto o meu colega foi apanhar a vacina do tétano eu fiquei sentado lá dentro da 'sala de curativos' onde estava a senhora (que mencionei antes) com um lenho na cabeça. Contaram (as duas enfermeiras, ou médicas) que a rapariga estava a lavar loiça quando caíu uma senhora pedra do telhado de zinco e fez uma ferida tal que tinha atingido um vaso. Como tinha ido a andar até ao centro chegou com o sangue quente e por isso, a ferida, espirrava sangue.
Lá me contou, enquanto apontava para o chão, que levantou o pano para ver a ferida e tinha saltado um jacto de sangue. Eu olhei horrorizado para o risco de sangue que estava pintado no chão e corria a pequena sala de um lado ao outro... felizmente a senhora já tinha um penso na cabeça e estavam à espera que a ferida acalmasse para a poderem coser.
A enfermeira chefe (pelos menos era a chefe delas as duas) disse para a senhora que acompanhava a da cabeça rachada 'Se ela tivesse ficado mais tempo lá em casa podia entrar em estado de choque por perder muito sangue' e eu pensei para mim próprio 'E será que aqui não vai entrar em choque por perder muito sangue? ou será que não vai acabar por apanhar uma infecção qualquer? afinal ainda não foi cosida e não.'
Nisto aparece um homem à janela, trazia um saco com medicamentos e disse que tinham custado mil Kwanzas, a enfemeira chefe pediu à enfermeira subalterna que confirmasse os medicamentos e perguntou se tinha receitado o 'schpirafernilfól' de 12 em 12h, ela replicou que tinha receitado de 8 em 8h e levou uma repreensão porque tinha que ser de 12 em 12, aquele medicamento não podia ser tomado de 8h em 8h. De seguida vira-se para mim e pergunta 'Já pagou?', 'Já paguei o quê?', 'Os medicamentos?', 'Quais medicamentos? não estou a perceber.', 'Esses aí, já não precisa ir à farmácia, nós tratámos de tudo e é mais barato, olhe que só pelo 'burfenilfalitílico' tavam a pedir 800Kz na farmácia ali do 'Ximbungo' e nós compramos por 200Kz'.
Fiquei meio desconfiado e preferia ter ido à farmácia comprar os medicamentos (sabe-se lá de onde é que aquilo veio, o mais provavel é que haja um chinês no fundo da rua a fabricá-los na hora) mas lá acabei por me deslocar até à janela, esticando-me todo para evitar pisar o risco de sangue que ninguém se preocupava em limpar, dar os 1000Kz ao homem que apareceu com os medicamentos.



Inicio da tarde:

Durante a tarde, enquanto estava num elevador entra um senhor. Era um chefe de cozinha, de uma cozinha que não vou especificar. Disse, 'Caramba, o homem já provou o vinho de quatro garrafas de 1000 dólares cada e não gostou de nenhuma, tenho que ir lá abaixo buscar uma outra que vale 1200 dólares'. Eu vi a nova garrafa, vinho português cujo nome não vou publicitar, de Évora, e custa em Angola 1200 dólares. Aprendi que é um dos melhores vinhos portugueses, senão o melhor, e que é feito apenas de 7 em 7 anos.
Conclusão, num almoço de terça-feira, apenas em vinho, alguém gastou mais de 5000 dólares de uma assentada só...
Não sei se aquela garrafa foi bebida ou não, mas pelo sim pelo não disse ao senhor que se não soubesse o que fazer com as garrafas rejeitadas mas podia entregar que eu encarregar-me-ia de lhes dar destino.
Infelizmente acabei por não receber nenhuma daquelas garrafas de 1000 dólares às quais faltavam apenas alguns mililitros mas foi por pouco que não estive de manhã na maior pobreza e à noite a deleitar-me com o melhor vinho.


Ah terra de contrastes, de manhã as pessoas passam dificuldades para conseguir pagar os mil kwanzas (10 dólares) da linha com que foram cosidas e à tarde não gostam do vinho de 1000 dólares por garrafa.

Como será que vai ser a manhã de amanhã?