Olá.
Não quero que pensem que estou a ressuscitar este blog dos
mortos, ele está morto e bem morto, mas por vezes os mortos também aparecem.
Aqui há uns dias uma aventura apanhou-me ali na estrada e
fiquei a pensar que é tão caricata que caso eu ainda me dedicasse à escrita havia de escrever
sobre ela, mas por outro lado, se matei o blog há meio ano atrás não fazia
grande sentido contar-vos as coisas que me acontecem deste lado do mundo. Andei
uns dias com vontade de a escrever e consegui controlar-me mas hoje estou sem
nada para fazer, num avião que já atrasou hora e meia por isso vou escrever.
Como ia dizendo, aqui há uns dias, ia eu todo pimpão no meu
carrito ali na Av. Comandante Valódia já a chegar à Alameda, aquilo é uma
estrada que naquela zona tem duas faixas mas como essas duas faixas estão
sempre paradas cheias de veículos que querem virar à direita para a Alameda
toda a gente sabe que quem quer seguir em frente vai pela terceira faixa, que
não existe fisicamente mas existe num plano espiritual. Todas as pessoas que
conhecem a rua sabem que é assim, a terceira faixa, para quem quer ir em frente
apesar de não se ver existe e por vezes até são os polícias que fazem uma
separação com aquelas coisas de plástico laranja e criam a terceira faixa para
aqueles que querem seguir em frente.
Pois bem, ia eu todo contente, com um sorriso na cara e
instintivamente vou para a terceira faixa, levava carros à frente e carros
atrás, o polícia que estava no cruzamento com a Alameda a coordenar o trânsito
mandou-me parar para que andassem aqueles que estão a circular na Alameda. Eu
parei, ele viu-me ali tão contente que pensou para si próprio ‘Espera aí que já
te tiro esse sorriso da cara’. Vai na minha direcção e pede-me a carta, era um
gajo novo, mais novo do que eu (ou talvez eu já não seja novo).
- ‘Fiz alguma coisa de errado?’ - perguntei enquanto lhe entregava a carta.
- ‘Você está a ocupar a faixa de rodagem contrária.’
- ‘Quê? Estás a gozar
comigo irmão?’
- ‘Aqui só tem duas faixas e o Sr. está a ocupar a faixa do trânsito
que vem em sentido contrário. O bilhete de identidade, tens?’ – Como eu já
apanhei uns tiques mwangolés na fala grande parte das pessoas acham que sou
angolano, eu procurei pelo passaporte e procurei e procurei e comecei a ter
suores frios… caramba, ser apanhado sem passaporte… isso dá para deixar ali no
bolso do outro um dinheirão e isso é se ele simpatizar comigo… andei à
procura e à procura… mas o passaporte estava na minha mochila que tinha deixado
no escritório.
- ‘Encoste ali e venha aqui ter comigo.’
Eu encostei o carro e ele mandou encostar também os três carros
que estavam atrás de mim. Fui ter com ele e disse:
- ‘Irmão, tu estás a brincar, não estás? Eu passo aqui todos
os dias, toda a gente faz isto, eu sei que só há duas faixas mas essas duas
querem virar à direita e quem vai em frente faz sempre assim e tem dias em que
há quatro filas irmão. Não me compliques. Olha estes todos aqui a passar, toda
a gente faz isto.’ - Dizia eu, enquanto apontava para uma terceira fila já com
dezenas de carros exactamente no sitio onde eu tinha estado.
- ‘Olha, já mandei parar também aqueles todos, o bilhete de
identidade? Já encontraste?’
Eu não o tinha encontrado como é obvio mas não me descosi e
nisto apareceu o pessoal dos outros carros que o polícia tinha mandado encostar
e estavam todos a mandar vir com o polícia quando ele devolveu a multa que
substituía a carta de condução de um candongueiro. O rapaz arengou qualquer
coisa que não percebi na direcção do policia e ele ficou irritadíssimo – ‘Eu vou-te apanhar.’ -
disse o policia enquanto apontava para o rapaz.
Aqui vamos fazer uma pausa, para vocês que não sabem como se processam as burocracias
aqui deste lado do mundo tenho que vos explicar que, aqui, quando cometemos uma
infracção no trânsito o polícia pede logo a carta para que não possamos fugir e
só depois se discute a situação. Por norma as coisas resolvem-se amigavelmente com uns valores que variam dependendo do humor do policia, do aspecto do infractor e da gravidade da infracção. Já da última vez (antes desta) que me apanharam não consegui chegar a
acordo, o policia estava irredutivel num valor, a negociação correu mal e ele acabou por passar-me mesmo a multa. Pois bem, como aqui a morada de muitas
pessoas é a casa sem número na rua sem nome apontar matriculas ou ficar com os
dados de alguém não serve de nada, então, os polícias mal apanham a carta na
mão metem no bolso e quando nos passam uma multa ficam com a carta e nós com a multa. A multa
substitui a carta de condução e supostamente depois de a pagarmos na
Direcção de Viação e Trânsito a carta é-nos devolvida. Ora, dessa última vez
que me passaram a multa esta foi paga no dia seguinte e a carta ainda não estava na DVT.
Andei dois meses com uma multa e o comprovativo do pagamento da mesma enquanto
um rapaz do escritório foi uma dezena de vezes à DVT para ir buscar a carta que teimava não aparecer, era sempre necessário algo mais, um papel de sabe deus o quê ou esperar mais uns dias. Por alturas destas peripécias que agora vos conto eu tinha a carta há três dias e já estava a vê-la desaparecer de novo.
Quando temos uma multa porque
a carta anda no bolso de um outro polícia ou perdida na DVT o polícia que nos manda encostar não tem
carta para apreender e então acontece que chateiam bem menos e mandam seguir
com mais facilidade do que se a tivéssemos. Como deste lado do mundo tudo
se consegue comprar e tudo se vende os candongueiros nunca andam com a carta,
têm sempre uma multa que a substitui durante umas semanas. Por isso é que
o polícia da aventura que vos conto devolveu uma multa e não uma carta de
condução ao candongueiro.
Mas voltando à aventura, o policia naquele momento em que
estava irritado devolveu as cartas de condução ao pessoal todo menos a quem?
Pois… a minha ficou lá no bolso.
- ‘Anda, eu vou contigo, onde é que está o teu carro? Vamos
virar ali à esquerda para o São Paulo, aquele gajo insultou-me e eu vou
apanhá-lo.’
- ‘Então e a minha carta? Devolveste a todos e não me dás a
minha?’
- ‘Mas não ouves o que eu digo? Eu vou contigo.’
Entramos no carro e começo a conduzir.
- ‘Vira aqui à esquerda, vamos para o São Paulo.’
- ‘Mas aqui é que é proibido virar.’
- ‘Mas sou eu que te estou a mandar, não te vou multar se te
mando virar aqui, vira à esquerda. Aquele gajo insultou-me e nós vamos
apanhá-lo.’
Lá fomos nós, havia uns carros à nossa frente e eu ia
descansadinho da vida atrás de quem vai à frente como sempre faço quando ele
faz uma cobra a ondular com o braço.
- ‘Hã? Viro aqui à direita?’
- ‘Não ginga pelo trânsito, rápido, vamos mais depressa.’
Tentei fazer conversa para ver se ganhava a simpatia do
polícia que ia ali ao meu lado mas a verdade é que eu sou uma nódoa a fazer conversa.
- ‘Eh pá, mas tu sabes para onde o gajo foi é?’
- ‘Foi para o São Paulo.’ E nisto lê a matricula da ximbunga
que tinha apontado no braço.
Chegamos ao São Paulo e vamos em direcção às traseiras do
Cine São Paulo e, como sempre, havia uma confusão enorme de trânsito ali, iam
umas ximbungas à frente e ele pergunta:
- ‘Consegues ver a matricula desse táxi aí?’
- ‘Hmm… não, o carro da frente tapa.’
- ‘Espreita aí, não consegues mesmo ver?’
- ‘Não, mas se quiseres podes sair para ver e eu apanho-te
mais à frente.’
- ‘É que o gajo não me pode ver, senão foge de novo.’ – disse
ele enquanto ia saindo do carro.
Eu fiquei parado no trânsito e ele foi andando… e daí a
pouco quando avancei e cheguei ao cruzamento mesmo nas traseiras do Cine São
Paulo já não o via. Caramba… eu ali, o homem com a minha carta… tinha que o encontrar
ou ficava sem carta para sempre.
Vou tentar descrever como é aquela zona… não há uma forma
simpática de ilustrar aquela zona e vai parecer uma descrição racista e
preconceitosa mas vou tentar fazê-lo da forma mais cordial possível. O São
Paulo é como que um dos locais onde acaba a Luanda cosmopolita com pessoas de
todas as cores e nacionalidades e começa a Luanda negra, uma cidade que a
maioria dos estrangeiros não conhece e onde tem receio de ir. Para lá do São Paulo
fica a Cuca e o Cazenga, bairros que a maioria dos estrangeiros que vivem nesta
cidade e que são muitos não frequentam nem conhecem. Enquanto que na cidade vemos europeus, norte e sul americanos e asiáticos por todo o lado, seja a pé ou de carro depois do São
Paulo isso é muito menos comum e as pessoas, por norma, estão muito menos arranjadas
do que as que se vêm no centro da cidade. Eu já dei uns passeios a pé ali pela
zona do mercado do São Paulo, onde o chão sujo está coberto de roupas, sapatos,
detergentes, bolachas, frutas e tudo o mais e as ruas estão cheias de gente,
muitas vendedoras sentadas no chão e muita gente a passar ou à espera de táxi.
Vocês que vivem aí na parte norte do nosso planeta estão já a imaginar uma
feira como as daí da tuga mas não é bem o mesmo. Passamos por bancas que vendem
peixe ou carne que estão ali à temperatura ambiente completamente cobertos de
moscas e quando passamos vemos um enxame de moscas a levantar voo durante dois
ou três segundos para poisar logo assim que nos encontramos a uma distância que
elas considerem segura. É uma zona de cheiros muito intensos e posso dizer-vos
que os tugas que trabalham comigo no escritório têm medo e nunca passaram por
ali a pé.
Pois bem, eu vi-me ali sozinho e sem saber do polícia que
tinha a minha carta. Estacionei e fui dar uma volta à procura dele… não foi difícil
de encontrar, há uma rua que vai das traseiras do Cine São Paulo para a estrada
principal e que fica completamente coberta de iáces, ninguém anda enquanto eles
não enchem o táxi e arrancam, uma por uma, demora-se uma meia hora para
percorrer aqueles dez metros de estrada de carro. Felizmente eu estava a
fazê-los a pé quando vejo um polícia a arrastar um marmanjo, já levava uma
multidão atrás e um outro polícia ao lado. Eu tentei tocar-lhe no ombro mas ele
estava ocupado a arrastar o outro marmelo que tentava evitar ser arrastado enquanto se ia queixando e pedindo para o largarem, o polícia que acompanhava o meu policia disse
que não era boa altura e eu limitei-me a segui-los. Arrastou-o até à esquadra móvel do São Paulo enquanto
ele ia tentando escapar e se queixava de ter sido agredido. Um monte de gente a
ver a confusão e a olhar para mim, que não sendo propriamente branco era a
pessoa mais engomadinha que ali estava e estava bem no meio da confusão. Algum tempo depois conseguiram enfiar o rapaz para dentro da esquadra móvel e depois de tudo explicado aos colegas que estavam de serviço lá houve um momento
mais calmo e eu pedi a carta ao polícia, ele disse-me que tivesse calma e que
fosse buscar o carro pois ele próprio iria levar o meliante para a esquadra. Lá
vou eu buscar o carro com a esperança de conseguir a carta de volta ainda
durante aquele dia… todo pimpão pelo meio dos táxis até que sou interpelado por alguém.
- ‘Para onde vais?’
- ‘O quê, estás a gozar comigo?’
- ‘A tua documentação, tens os teus documentos contigo?’ –
era um outro policia, este com uma farda mais escura que os de trânsito mas não
era dos ninjas, pareceu-me ser de um escalão inferior aos de trânsito.
- ‘Eh pá, eu não tenho tempo para isto, estou ali a ajudar
um colega teu que está ali na esquadra móvel e me pediu para ir buscar o carro.’
- ‘Ah sim? E para onde vais?’
- ‘Vou buscar o carro, eu tive que dar boleia a um colega
teu para apanhar um meliante e agora ele pediu-me para ir buscar o carro, iá?’
- ‘Sim, mas depois disso, para onde vais?’
- ‘Então, depois vou trabalhar irmão, eu estava a trabalhar
antes do teu colega me pedir ajuda.’
- ‘Ah, é um transito, é?’
- ‘Sim irmão, tenho que ir, iá?’
- ‘E não deixas uma ajudinha?’
- ‘Hoje não pá, já estou bem enrascado com o teu colega.
Hoje não dá, iá?’
E lá vou eu buscar o carro. Um tempão depois lá estou eu a
chegar à esquadra móvel e ele diz-me para estacionar do outro lado na berma.
Passado um pouco vem ter comigo e diz que já está tudo resolvido, só tive que
lhe dar boleia de volta para onde ele me tinha encontrado e lá recuperei a
carta de condução. Só demorou uma tarde quase inteira, mas pelo menos ganhei uma aventura para contar :).
Bernardo.