quarta-feira, 16 de novembro de 2011

The End



Aqui o 11 de Novembro é feriado, é o dia da independência e como tive a sorte de me calhar numa sexta-feira aproveitei para escapar ao trabalho de sábado e ir conhecer mundo com a ‘mary poppins’. Decidimos partir por essas estradas fora e ir até Malange para ver a quedas de Kalandula. 
Ainda mal tínhamos iniciado a viagem quando, pelo caminho, apanhámos com uma tempestade diferente de qualquer outra pela qual eu tivesse passado antes. Era uma tempestade tal que por vezes mal se via a estrada mas o que caía no vidro do carro não era água da chuva, nem neve, nem granizo... eram borboletas, borboletas pretas.
Não sei que fenómeno borboletífero acontece por esta data nesta parte do globo mas a verdade é que estou convencido de que todas as borboletas pretas do mundo se reuniram ali, numa faixa de alguns quilómetros de estrada rodeada de floresta entre Luanda e o N’Dalatando. Um milhão de borboletas morreram no vidro do meu carro, outro milhão no do carro da frente e mais outras tantas no carro que seguia à frente desse. Havia tantas borboletas que não era possível passar sem esborrachar um milhão delas que ao serem esmagadas contra o vidro o deixavam coberto de uma substancia pastosa amarelada que teimava em não sair facilmente apenas por se borrifar água no vidro e ligar os limpa pára-brisas. Um milhão daquelas borboletas morreu naquele dia por cada carro que passou naquela estrada e ainda assim o chão estava coberto por milhões mais.

No N’Dalatando fizemos uma paragem para conhecer a cidade e tirar umas fotografias e em menos de alguns minutos ficámos rodeados por umas dezenas de miúdos que tudo o que queriam era que eu lhes tirasse uma fotografia para que depois a pudessem ver e se conseguissem encontrar a si próprios, no pequeno ecrã da máquina, no meio da confusão de pequenos que povoava cada fotografia. A vontade de se verem na fotografia era tanta que não paravam de se empurrar uns aos outros e de me puxar os braços para que cada um fosse o primeiro a poder gritar ‘eu estou ali, aquele sou eu’.

Seguimos para Malange, e como fomos à aventura, sem hotel marcado corríamos o risco de não haver quartos e qual não é... corremos todos os hotéis da cidade, todas as pensões e todos os albergues, ninguém tinha quartos... nem mesmo a subtil insinuação de que eu pretendia pagar o dobro do valor do quarto, apenas por causa do ar simpático do dono de uma albergaria, quando este me disse que tinha acabado de alugar o último surtiu qualquer efeito. Valeu-nos o tuga, dono de um restaurante que nos encaminhou para uma missão beneditina / seminário onde dormimos num quarto paupérrimo, com uma casa de banho sem luz e onde na manhã seguinte não havia água. Na incansável busca por um quarto acabámos por conhecer um simpático casal de estranhos que andava na mesma odisseia e com o qual nos cruzámos diversas vezes e sem que tivessemos combinado acabaram por ir parar ao mesmo sitio que nós.
Fomos ver as quedas de Kalandula no dia seguinte e imbuídos do espírito de aventura que África nos faz sentir decidimos meter a nossa amostra de jipe pela picada entre Kalandula e o Cacuso em vez de seguir pela estrada de alcatrão que tínhamos feito no dia anterior. Perguntei à ‘betty boop’ se ela se sentia com vontade de arriscar a ficar atascada na lama sem rede de telemóvel para pedir ajuda e a dezenas de quilómetros de qualquer povoação, como obtive resposta afirmativa lá fomos nós. Passámos por kimbos esquecidos pela civilização onde os pequenos nos acenavam e gritavam quando passávamos, noutros onde os pequenos que brincavam na lama fugiam ao avistar o carro e sempre que encontrávamos três ou quatro a brincar perto da estrada oferecíamos-lhes os bombons que tínhamos comprado numas bombas de gasolina e em troca eles ofereciam-nos um sorriso imenso e alguns gritinhos de alegria.
Valeu-nos a tracção às quatro rodas da nossa mini-micro-amostra de jipe pois passamos em alguns lameiros onde deu para a adrenalina subir ao cérebro e criar um medo miudinho de ficar no meio da lama.
Umas vezes rodeados de floresta, outras a ver savana até onde a vista alcança foi ali que me senti mais em África.

Fomos ver as Pedras Negras de Pungo Andongo um sitio espetacular e onde vale mesmo a pena subir e sentar um pouco a apreciar a vida e ainda tentamos ir ver a maior barragem de Angola, a barragem de Capanda. Eu que já estive na de Cambambe e sei que tive que passar por dois controlos policiais onde foi necessária uma autorização já sabia que o mais provável seria não podermos chegar nem perto e assim foi. Um ‘pula’ habituado a passear por cima das barragens da tuga não se lembra destas coisas mas imagino que as barragens, durante a guerra, fossem alvos militares bastante apetecíveis para o inimigo e como tal têm que ser bem protegidas. As memórias da guerra ainda não desapareceram por completo e no controlo policial antes da barragem de Capanda não nos deixaram passar para a visitar, é preciso autorização e nem sequer de longe chegámos a ver o rio. Pelo caminho vimos apenas tempestades ao longe, na savana, com relâmpagos a cair em locais distantes.

Tirámos muitas fotos bonitinhas entre as quais a que eu mais gosto é a das seis pequenas com que nos cruzámos em Kalandula, cada uma levou um bombom e em troca posaram para uma fotografia linda que a ‘quinny’ tirou e com que eu enfeitei este post para que parecesse bonito e vos levasse, ao engano, a lê-lo. Fizemos também dois filmes, são bastante foleiros mas por certo vocês também não esperavam melhor. A verdade é que foram feitos com uma máquina fotográfica das reles e baratas e também se eu soubesse fazer filmes estava a esta hora em Hollywood, numa qualquer festa muito chic, ao lado da Angelina Jolie e de outras que tais, certinho é que não estava aqui a escrever nem vos ia contar nada do que fizesse nessas loucas festas cheias de actrizes lindonas.

O filme das quedas de Kalandula podem ver em:

O filme com as borboletas podem ver em:

Chamo a atenção para a berma da estrada, esta é de cimento branco mas de tantas borboletas ficou completamente preta. 
Cada ponto preto que se vê no filme não é um lixo na câmara nem no vosso ecrã, é uma borboleta que mais tarde se transformou em 'gosma nhanhenta espalhada pelo vidro de um carro'.

Para as fotografias, que são muitas fiz um novo álbum, encontram-no em:

Esta foi a última vez que vos escrevi e é aqui que me despeço de todos vós... infelizmente escrever faz-me ficar com o ego gordo (coisa típica de homens), caso vocês não saibam egos gordos fazem pessoas arrogantes e eu já não ando longe de me achar um qualquer semi-deus, tal e qual divindade incarnada já tenho alguns tiques faraónicos... Tudo isso não ajuda nada a ser boa pessoa, mas também não é para menos, a verdade é que tenho vinte e oito seguidores e lembro-me vagamente de ter ouvido falar de alguém que há dois mil e tal anos atrás tinha apenas doze seguidores, sem internet e sem nada acabou por morrer com a idade que tenho hoje e daí surgiu uma religião imensa com milhões de seguidores. Pois bem, não é nada disso que pretendo para mim, eu quero apenas ser eu pois é aquilo que sei fazer melhor e uma vez que já tenho mais do dobro de seguidores do que esse outro rapaz tinha com a minha idade parece-me que o mais sensato é parar por aqui.
As escrituras do Bernardo acabaram hoje, a 16 de Novembro,  quatro ou cinco meses antes de fazer dois anos que começaram. Dois anos é uma vida e valeu a pena a este blog existir por este tempo, hoje morreu mas morre com a sensação de que teve uma vida jeitosinha, não foi inesquecivel mas viveu, não era intenção dele deixar saudades nem que a sua falta fosse sentida.
Saibam que se aqui voltarem será apenas para reler histórias antigas (a verdade é que há duas ou três que são razoaveizinhas e vale a pena reler).

Desta é que não volto,
Bernardo Marques.

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domingo, 16 de outubro de 2011

Sorriso Chocolate


Hoje conheci alguém que verdadeiramente me impressionou, desta vez, ao contrário de quando o disse no texto que escrevi há uns dias, digo-o sem qualquer sarcasmo na voz. 
Durante o curto tempo que já vivi não foram muitas as pessoas que me impressionaram de verdade. Não me consigo lembrar de muitas mas também é natural, eu não ando aí pela rua a tentar impressionar os outros e, como tal, tomo como natural que os outros não andem por aí a tentar impressionar-me mas por vezes acontece quando não estamos nada à espera. 

Lembro-me de um indiano que numa manhã de Maio de 2006, numa rua de Hong Kong, me confundiu com alguém conhecido e me falou em híndi (ou numa qualquer outra das restantes 21 línguas oficiais da Índia) e quando viu o meu olhar de estranheza lá me perguntou em Inglês se eu não era Indiano. Disse-me que eu era deveras parecido com um grande amigo dele. Sentei-me num banco de jardim com o homem e enquanto conversávamos ele escrevinhou umas coisas num papel e disse que tinha um dom. Dobrou o papel, pôs-mo na mão, pediu-me que a fechasse com força e a mantivesse bem fechada, depois foi fazendo perguntas:

- ‘como te chamas?’ – ‘Bernardo.’
- ‘que idade tens?’ – ’28.’
- ‘e de onde és?’ – ‘ de Portugal.’
- ‘és casado?’ – ‘ah, nunca assinei nenhum papel, nem nunca se fez nenhuma festa, mas sim, vivo com uma rapariga por isso acho que sou casado.’
- ‘e qual é o nome dela?’ – ‘ora, é um nome português, se eu o disser digo-o em português e o mais provável é que não percebas.’ – ‘está bem, mas diz-me o nome dela.’ – ‘Cristina.’
- ‘se tivesses um desejo que se pudesse tornar real, apenas um, qual era a coisa que mais querias neste mundo?’ – ‘oh, eu sou uma pessoa simples e o que quero é apenas ser feliz, não preciso ter dinheiro nem viajar, não quero ser importante nem ser influente, não quero ser rico nem quero ser famoso, quero apenas ter uma vida feliz.’
- ‘Diz um número entre um e dez’ – ‘sete.’
- ‘Abre a mão e vê o papel.’

O pequeno farrapo de papel que aquele desconhecido me deu para a mão, antes de eu lhe ter dito qualquer uma daquelas coisas, depois de desdobrado revelou ter escrito ‘Cristina’, ‘Happy Life’ e ‘28’.
Ele lá explicou que o 28 era a minha idade, Cristina o nome da minha mulher e Happy Life o meu desejo. Disse-me que 2007 seria o meu ano de sorte, daí eu ter escolhido o número sete, e que eu iria ganhar uma fortuna nesse ano e ele estava tão convencido disso que num outro papel escreveu o seu nome, Gulzar Singh, e o número de telefone dele na Índia. Mostrou-me umas fotografias de uns rapazes com diferentes deficiências e disse-me que na Índia ele dirigia um mosteiro onde acolhiam crianças desfavorecidas. Pediu-me encarecidamente que quando eu ficasse rico (no ano seguinte, 2007) não me esquecesse dele e fizesse uma contribuição para a instituição. Eu como céptico que sou nestas coisas místicas disse:  ‘eu prometo que não me esqueço de ti e no dia em que a sorte me abraçar vou partilhá-la contigo, mas explica-me como raio fizeste isso?’ ao que ele apenas respondeu ‘Nós os indianos temos um dom.’ e foi embora.

Olhei de novo para o papel e o facto de estar ali escrito ‘Cristina’ no meio de um quadradinho de papel, sentado num banco de jardim de Hong Kong onde a maioria do pessoal nem sequer fala uma língua que se perceba, caramba fiquei abismado e as 8 horas de diferença para a tuga, que faziam com que fossem 3 da manhã para a Tini, não me impediram de lhe ligar para contar o que tinha acontecido. Não mais me separei daqueles quadradinhos de papel e se bem que raras vezes me lembro disto ainda hoje os tenho comigo (aqui em Luanda). 
Apesar de ter jogado umas duas ou três vezes no euromilhões no ano de 2007 a verdade é que não me saiu e o pobre Gulzar nunca mais me viu ou ouviu falar de mim nem do meu dinheiro, mas caso ele tenha mesmo um dom e só se tenha enganado no ano eu tenho o número de telefone dele.

Houve outras pessoas que num ou noutro momento da vida me conseguiram tocar na alma e deixar marca para a vida mas voltando ao dia de hoje... hoje fui ao Kero às compras com a Feliztini (mudei o nome dela há uns dias) e fizemos muitas compras cansativas e tudo o mais e andámos às turras um com o outro por causa dumas makas com a carne e com a moça carniceira. Quando estávamos a chegar com as compras ao carro, amuados um com o outro aparece uma pequena... não sei que idade terá ela (aqui nem sempre é fácil saber a idade duma criança apenas tirando-lhe as medidas, um miúdo mal nutrido pode ter metade do tamanho que devia) mas aparentava uns nove anitos, era muda e muito provavelmente também surda e fazia uns sons acompanhados pelos gestos que faziam com que a entendêssemos.
A primeira coisa que disse, passando a mão à frente da cara seguida por um sinal de fixe com o polegar e apontando para mim, era que eu sou um gajo bonitinho, como a Feliztini não percebeu ela repetiu mais duas vezes até que eu traduzi os gestos em palavras (agora que penso melhor se calhar a rapariga não é surda). Se descontar a minha avó e a minha mãe ela é uma das três ou quatro mulheres que alguma vez me disseram que sou bonitinho por isso fiquei logo a gostar daquela pequena. Depois fez um montão de gestos para nos explicar que estava ali para nos aliviar da entediante tarefa de colocar as compras dentro do carro e embora não tivesse tamanho para conseguir tirar os sacos do carrinho de compras nem para os colocar mais longe do que a porta da mala do Jimny começou logo a arrumar as tralhas que tenho sempre na pequena mala do carro. Exigiu que lhe déssemos para as mãos todos os sacos e sempre com um sorriso enorme no rosto e uma alegria contagiante lá foi pondo os sacos dentro do carro. Quando acabou a tarefa ainda fez um gesto passando a mão em frente do corpo todo seguido de um sinal de fixe e apontando para a Feliztini que eu interpretei como sendo um sinal de que ela se veste bem. No fim a Feliztini deu-lhe um pacote de bolachas de chocolate e 500Kz e fomos embora enquanto ela nos acenava. 
Ia no carro a caminho de casa e o sorriso daquela pequena que nada tem, não consegue falar e tem que ir para o parque do Kero para ganhar algum dinheiro aos nove anos não me saía da cabeça... baptizei-a na minha mente de ‘sorriso chocolate’.

Eu já vos disse que sou feliz, mas a mim a vida deu-me tudo o que precisava para ser feliz, para dizer a verdade deu-me bem mais do que eu precisava para ser feliz, muito mais do que preciso para viver e muito provavelmente bastante mais do que mereço. É bem possível que por cada euro que aquela pequena consegue eu consiga cem, já fiz algumas viagens e conheci outros mundos, por cada metro que ela já se afastou de sua casa é possível que eu tenha viajado quilómetros...
Nesta vida sou feliz mas numa outra vida, na próxima vida eu quero ser um sorriso chocolate, quero não ter nada e ser alegre, quero não ter nada e sorrir, quero não ter nada e conseguir alegrar tontos que tudo têm e andam carrancudos. Quero não ter nada e conseguir ser feliz.

Tenho pena de não andar sempre com a máquina fotográfica pois se a tivesse hoje de certeza que no cimo deste texto estaria um grande sorriso escarrapachado, um sorriso de dentes brancos que vos iria proibir de andar tristes ou carrancudos.
A existir um deus, imagino que se ele quisesse enviar um anjo para acordar uns tontos do sono em que vivem, esse anjo seria aquela pequena. Pena é que eu saiba que não demoramos muito para que o torpor volte e faça com que nada façamos para tentar mudar um pequeno pedaço do mundo que seja.

Ainda no início da viagem para casa, mal tínhamos saído do parque do Kero quando a Feliztini diz: ‘Tenho tanta pena daquela pequena, este mundo é tão injusto, apetecia-me levá-la connosco e ajudá-la.
Ao que eu respondi: “Sim, num mundo um pouco mais justo ter-lhe-íamos pelo menos perguntado quanto é que ela precisa de levar para casa quando vai para ali pedir... se calhar ela vai lá apenas para ganhar mil kwanzas e devíamos pelo menos dizer-lhe ‘olha, vai para a escola estudar que eu dou-te mil kwanzas todos os dias’, mil kwanzas por dia nós nem notávamos e para ela poderia ser a diferença para ter uma vida melhor.”
Uma lágrima ficou ali no canto do olho e ao olhar para o lado vi que no rosto da Feliztini já corriam umas quantas.

É pena que o egoísmo seja algo intrínseco de todos os seres, agarramo-nos demais aquilo que pensamos ser nosso, a verdade é que cada um apenas pensa em si e de vez em quando naqueles que ama e todos nós temos um sentimento de posse muito forte do qual é muito difícil que nos libertemos. A minha comida, a minha casa, o meu dinheiro, as minhas coisas. Mesmo tendo mil vezes mais do que aquela pequena não demos mais do que migalhas que nenhuma falta fazem, apenas damos aquilo que não custa perder. Em que mundo se pode permitir que alguém tenha mil vezes mais do que outros? Num mundo onde milhões de pessoas têm mil vezes mais do que eu e há biliões que têm mil vezes menos. Neste mundo, a viver num local onde o respeito pelo outro parece que nem sempre é importante por vezes dou por mim a pensar que até tenho um coração bom apenas porque deixei uns pequenos que vêm da escola atravessar a estrada e eles me agradecem sorridentemente mas caramba, para deixar pequenos atravessar a estrada nem coração é preciso ter, basta que se tenha uma consciência.
É óbvio que sei que a escola aqui provavelmente de pouco servirá a alguém que é mudo e possivelmente surdo, é possível também que se ela tivesse mil kwanzas preferisse ganhar outros mil em vez de ir à escola... mas pelo menos eu teria feito algo.
Quando voltar lá vou procurar aquela pequena, tentar dar-lhe algo mais, não sou a Madre Teresa e é muito provável que não seja eu a mudar a vida daquela pequena, ela não consegue falar e nós não a conseguimos perceber, nem sequer o nome dela conseguiremos saber, mas eu gosto dela.

Antes de deixar este mundo espero um dia poder tocar na alma de alguém e deixar marca, espero fazer algo por uma pessoa que não conheço, algo que esse alguém nunca esqueça e que faça realmente a diferença. 
Algo que me custe mas que seja bom.

Será que já ganhei a fortuna que o Gulzar Singh previa?

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terça-feira, 4 de outubro de 2011

Dondo Trip




Hoje, numa viagem de trabalho passei pelo Dondo, uma pequena cidade da província do Kwanza Norte. 

Andava eu por lá a tirar umas fotografias ao rio quando passa por mim e pelo meu colega Eduardo, que foi comigo, um grupo de quatro marmanjos. Qual não é quando de repente e assim do nada alguém que eu não conheço de lado nenhum passou a ser a pessoa por quem, eu, mais consideração tenho neste mundo. Então não é que enquanto bebia uma cervejola e ia andando pelo caminho um deles, com a mão que tinha livre, saca o instrumento de fora e sem que nada o detivesse das outras duas tarefas (caminhar e emborcar o conteúdo da garrafa de cerveja pela goela abaixo) começou a libertar os fluídos corporais que tinha em excesso. Caramba, vocês já viram, o rapaz conseguia fazer as três coisas ao mesmo tempo o que já de si é uma acrobacia, no mínimo, de difícil execução mas traz também inúmeras vantagens. Para começar ia regando o caminho, que por ser de terra e estar um dia de calor imenso levanta pó, estando a terra humedecida não há pó, um favor que fez à comunidade. Depois o rapaz tinha pago pela cerveja e estando já cheio ele conseguiu, enquanto ia bebendo, criar no interior de si próprio espaço para a cerveja que restava na garrafa, um favor que fez a si próprio. Fez isto tudo sem abandonar por um instante que fosse os seus três amigos que, tenho como certo, muito prezam a sua companhia, um favor que fez aos amigos.

Naquele momento deu-me vontade de não deixar passar a oportunidade de conhecer tamanha personalidade mas, felizmente, de rompante atingiu-me na cabeça a ideia de que assim que eu o interpelasse ele se iria voltar para ver quem estaria a falar com ele (uma quarta tarefa que não tenho dúvidas conseguiria ainda fazer sem ter que interromper nenhuma das outras) e ao voltar-se poderia por instantes perder o controlo do jacto de liquido que estava a libertar e estando a voltar-se para mim eu corria sérios riscos de ser regado com liquido morno, o que numa tarde de calor, com o sol a queimar todos os pedaços de pele não cobertos e com a careca coberta de suor, presumo não ser nada de agradável.

Deixem-me dizer-vos que aqui por estas paragens é comum ver o zingarelho de um qualquer jovem a se aliviar voltado para a estrada ou senhoras a libertarem-se do que as aflige no passeio ou numa qualquer berma de estrada, não foi o instrumento do rapaz que me impressionou nem o facto de ele despudoradamente se libertar no caminho, isso é normal, foi mesmo o facto de ele conseguir fazer tudo em simultâneo.


A caminho de Luanda, a uns 112Km da cidade, uns 500m antes da cortada para Malange, vinha eu entretido na minha tarefa de conduzir, concentrado em desviar-me dos buracos da estrada (pobre Suzuki Jimny, perdeu pelo menos três anos de vida hoje, houve alturas em que pensei que ia rebentar ambos os pneus da frente ou partir o eixo da direcção, o raio dos buracos têm a mania de aparecer do nada sempre quando um gajo já vai a 100 ou 120Km/h, por vezes não dão grandes hipóteses) e dos camiões dos chineses (os chineses proliferam por estas paragens que nem coelhos, aconteceu-me hoje encontrar de uma só assentada quatro camiões de chineses em contramão a ultrapassar outros oito exactamente no momento em que nós decidimos estar a passar naquela estrada) quando os olhos atentos do Eduardo viram algo diferente e ele perguntou, ‘hei, o engenheiro já viu aquilo?’. Pois bem, era um bosque diferente, um bosque em que as pequenas ervas comem árvores grandes, havia até imbondeiros a ser completamente devorados pela gula daquelas pequenas folhas. Parece que alguém fez um gigantesco lençol de pequenas folhas e o atirou para cima do bosque, ou talvez tenha nevado folhas que ao cair, tal como a neve, cobriram o bosque por inteiro. Tirei umas fotos que pus no álbum (já antes pus umas outras sem vos dizer nada), mas não me atrevi a pôr os pés num bosque sem chão onde as folhas comem árvores... tenho a certeza que se me tivesse dado para entrar não estaria agora aqui pois teria sido devorado pelas folhas num instante. 
Tenho cá para mim que aquele bosque foi amaldiçoado por um qualquer kimbanda há milénios atrás e desde então aquelas folhas malditas comem tudo o que se lhes atravessa no caminho (ou também pode dar-se o caso de o rapaz, meu ídolo de que vos falei há poucas linhas atrás, passar por lá habitualmente e dever-se a isso o facto daquelas ervas crescerem tão viçosas).

Aqueles de vocês que quiserem ver as fotos vejam as últimas do album em https://picasaweb.google.com/117986880837828270606/FotosAngola

Não sei se volto,
Bernardo.

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domingo, 2 de outubro de 2011

Sunset Party




Hoje eu e a Timberli decidimos ir ler os nossos livros para a praia.

Fomos para o Tamariz e abancámos num sofá a ler. Um pouco sem querer acabamos por dar de caras com uma ‘sunset party’. Música alta, um montão de gente bonita e uns quantos a dançar. Ver o angolano a dançar é algo de extraordinário. Acreditem que todos os tugas que dançam nesses inúmeros bares e discotecas que proliferam por aí parecem uns atadinhos perto de um qualquer angolano dançante.

Eu nunca fui muito moço de ir a discotecas nem de gostar de bares dançantes, mesmo em novo sempre preferi passar as noites em bares calmos, apenas com música ambiente, a ter conversas de teor filosófico (filosofias de adolescente) com os amigos, acompanhados por uma(s) garrafa(s) de vinho ou uns cálices de porto mas uma vez ou outra, uma ou outra pessoa lá me conseguiu convencer a ir a uma ou outra discoteca. Enquanto nas discos da tuga sempre apanhei grandes secas, encostava-me a um canto e ficava lá a beberricar uma qualquer substância alcoólica e a olhar para uma ou outra rapariga bonita a dançar aqui a coisa é diferente. Se há coisa que o angolano não tem é complexos, não sei se será por dançar em inúmeras festas desde pequeno ou se vem da educação, o angolano é completamente livre numa pista de dança e dança de tal forma cativante que nos faz (aos toscos que são amarrados como eu) aproximar da pista de dança e ficamos ali na fronteira entre a ‘não pista’ e a pista, com o pézinho já a pisar dentro da pista e com uma vontade enorme dentro de nós a fazer força para que nos juntemos a eles. Uma vozinha cá dentro a dizer, vai, liberta-te, dança, salta, sem medo, se eles todos conseguem tu também consegues, mexe-te sem vergonha.

Ainda não foi hoje, só consigo dançar assim se estiver sozinho no quarto ou na sala... basta que  existia um par de olhos nas proximidades e fico com umas grilhetas muito pesadas amarradas aos pés e então apenas cruzo os braços, vou abanando o joelho direito e fico ali, cheio de vontade de ir para o meio deles  mas sem coragem para o fazer, com medo de fazer figura de urso e ser expulso da pista por todas as pessoas que querem realmente dançar. Alguém que ande por ali a olhar muito atentamente para os joelhos do pessoal vai ver que eu estou de facto a dançar... apenas com o joelho direito, mas para todas as outras pessoas sou simplesmente alguém com um ar muito sério a ver todo o resto do pessoal divertir-se.

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segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Ganhar asas...




Alguma vez vos pareceu que quase conseguiam voar?

Não me acontece todos os dias, para dizer a verdade nem me lembro de quando o senti pela última vez... mas por umas três ou quatro vezes na vida pareceu-me que era capaz de voar por alguns segundos.
Eu e a minha sapinha por vezes dá-nos uma de ir correr para o calçadão na ilha de Luanda, não é para perder a barriga nem para ser mais saudável é só para exercitar um pouco estes músculos flácidos. Andamos mais do que corremos mas damos sempre uma corridinha, por cada passada minha ela tem que dar umas três e um dia destes, enquanto corria, lembrei-me que quando ainda tinha a minha juventude aconteceu sentir que quase voava.

O caminho de casa para a universidade eram uns dois ou três quilómetros que eu percorria a pé todos os dias, alguns por duas vezes (ir e voltar) outros quatro (quando ia almoçar a casa). Lembro-me que uma ou outra vez vez corri, já não sei porquê, talvez estivesse atrasado, ou talvez só me apetecesse correr. Houve um dia em que alarguei mais o passo (tenho umas pernas compridas) e a dada altura dei por mim a saltar que nem uma gazela de thompson e talvez só parecesse um miúdo tonto a correr de forma ridícula mas a verdade é que ficava no ar por mais tempo do que aquele que parecia lógico, a cada passada sentia que ficava suspenso por breves instantes antes de voltar a poisar os pés no chão e parecia que em cada passada conseguia voar por um segundo.

Lembro-me de outra vez em que descia os degraus de uma qualquer escadaria três a três (tenho pernas compridas) e como três degraus é fruta a mais para umas pernas, mesmo que compridas, o pé de trás tinha que levantar antes do da frente sentir o chão. O calcanhar do pé da frente quase que tocava no degrau anterior àquele em que iria poisar, o que me faria ir com a cara ao chão e rebolar escadaria abaixo, mas dava a sensação que algo fazia com que ficasse suspenso no ar umas milésimas de segundo a mais do que que seria racionalmente espectável e acabava por aterrar no degrau desejado e por momentos, por breves momentos, em cada um daqueles saltos, quando estava no ar parecia que conseguia voar por um nadinha.

Quando já era maiorzinho, mais responsável e respeitável e já tinha um trabalho decente, esse trabalho levou-me quase sempre ao último piso de todos os edifícios que visitei. Quem no seu trabalho passa o tempo a ir ao último piso de diversos edifícios não perde a oportunidade de ver o mundo de uma perspectiva diferente e de, pelo menos nos mais altos, ir ao terraço ver o quão pequeninas as pessoas são quando vistas lá de cima, como os automóveis parecem os carrinhos de brincar da infância, de ver até onde a vista alcança e se afinal está ou não no ponto mais alto da cidade. Eu nunca perco a oportunidade.
Pois bem, eu não tenho instintos suicidas caso assim fosse não estaria agora a escrever, mas já me aconteceu, por mais do que uma vez, quando estou bem lá no cimo a olhar para baixo (ei... nunca estou na beirinha do precipício, não imaginem a coisa com tanto dramatismo, os terraços têm sempre um muro), a sentir o vento forte contra o peito, caramba... já dei por mim a pensar que com aquele vento, daquela altura, se calhar era possível, qual será a sensação? mas algo fez com que eu voltasse à razão e dissesse a mim mesmo que era um nadinha estúpido e que ia esborrar-me (esborrachar-me + borrar-me) todo no chão lá em baixo o que não ia ficar nada bonito e era bem capaz de chocar um ou outro transeunte.

Isto tudo para dizer o quê? Que decidi que vou voar.
Aos 30 anos decidi que havia de andar de mota e comprei a minha Suzuki VStrom 650, fui tirar a carta e sem que nunca antes tivesse andado em qualquer motoreta passei a andar de mota todos os dias, com chuva ou com sol. Agora, em Angola, a minha ‘maria bolacha’ não me deixa ter uma mota (e eu que queria tanto gastar um dinheirão para ter o novo modelo da VStrom). Acha que só os loucos e desajuizados se metem numa mota em cidades onde não há regras de trânsito. Eu como até concordo com ela, aos 33 deu-me para voar.
Vou ganhar asas e voar, para ser mais preciso, vou ganhar dinheiro para comprar uma asa de parapente e depois vou ter que ter um montão de aulas para aprender a voar e um dia, um dia que ainda vem longe (só vou poder ter aulas nas férias, duvido que haja instrutores de parapente em Angola) vou levantar voo do heliporto da Sonangol, ou do terraço da ESCOM e serei o primeiro maluco a voar sobre os céus de Luanda e a aterrar numa qualquer praia da ilha, ou nos jardins da nova marginal que por essa altura já estará acabada. Será que se pode voar nas cidades? Se calhar vou acabar preso.

Vocês podem não acreditar mas um dia os habitantes de Luanda vão olhar para cima e ver um estranho ponto no céu. Esse ponto serei eu.

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sábado, 24 de setembro de 2011

Sê gentil sempre que for possível.




África faz-nos sentir pequeninos, basta sair da cidade e percorrer uma qualquer estrada para notarmos que aqui o mundo é diferente, é maior. 
Andamos centenas de quilómetros sem ver mais do que mato e quando passamos num qualquer kimbo de meia dúzia de casas percebemos que afinal é possível viver sem ter nada daquilo que pensávamos ser essencial. Os kimbos aqui não têm água nem luz, têm apenas uns casinhotos feitos de madeira ou de tijolos de terra com telhados de colmo ou chapa de zinco. Não têm ruas asfaltadas nem passeios (isso nem a maioria das cidades tem) têm apenas terra entre as casas, não têm lojas nem restaurantes, têm, aqueles que são maiorzitos, apenas uma escola e um centro de saúde minúsculo. Ainda assim, ao passar, vejo os pequenos a ir a pé pela estrada sorridentes a caminho da escola que fica na aldeia ao lado e levam, para além dos livros, uma cadeira de plástico debaixo do braço. Oiço crianças rir enquanto brincam num rio navegando na sua pequena jangada feita de três troncos de bananeira e mulheres a cantar enquanto se lavam ou lavam a roupa no rio.

Depois uma pessoa chega a casa e liga a televisão para descobrir que aí na tuga fazem manifestações porque estão a pensar fechar a escola e as crianças terão que ir, num qualquer transporte que a câmara disponibilizará, para uma outra escola numa outra aldeia a 4Km de distância. Uma pessoa até se sente mal e pensa ‘caramba, quatro quilómetros são 5 minutos de carro, aqui alguns miúdos com mais sorte que outros têm uma cadeirinha que podem levar para não terem que se sentar no chão’.

Um gajo decide sair de casa e ir jantar com a sua doninha a um qualquer restaurante e não demora muito para se aperceber que devia ter ficado a ver televisão... há um ano e pouco atrás, quando cheguei, aquilo que me causava mais impressão era a lentidão dos empregados de mesa, o facto de ter que esperar horas e horas pelo manjar pelo qual iria pagar uma pequena fortuna, mas agora que tenho frequentado restaurantes mais céleres e também mais dispendiosos noto que afinal não é isso o pior dos restaurantes. Aquilo que causa mais asco, o pior mesmo, são as pessoas, os clientes. As pessoas, quando se sentem pequeninas, assim que têm algum dinheiro no bolso ficam com o rei na barriga e ficam todas inchadas a pensar que afinal são muito importantes e que sem eles este mundo não existiria. E o que há de melhor para ficar ainda mais importante? Destratar outras pessoas, falar de cima e com desprezo e é vê-los a inchar e inchar, cada vez mais importantes cada vez com mais antipatia... poxa, não custa nada ser simpático, não se paga mais por ser simpático e se fizermos alguém sorrir não vamos perder nada só damos e ganhamos um pouco de felicidade. Aqui há dias estava com a Timbi num bom restaurante onde o serviço e a comida são excelentes e ao nosso lado estava uma mesa de 8 tugas em que pela certa nem conseguiram desfrutar da boa comida pois passaram o tempo todo a destratar os empregados de mesa, até parecia que cada naco de antipatia que lançavam ao empregado rendia créditos de importância no seio dos seus amigos. Até eu e a Tini quase nos engasgávamos com os lombinhos de lagosta envoltos em bacon.
Uns dias antes fomos a uma pizzaria e mesmo ao nosso lado estavam duas pequenas angolanas que não deviam ter mais de 16 ou 17 anitos e durante todo o jantar não conseguiram dirigir uma frase ao empregado de mesa que não fosse recheada de antipatia, reclamavam de tudo e de nada, principalmente coisas sem sentido.

Eu sou feliz, o pedaço de vida que já vivi deu-me tudo aquilo que podia esperar dela. Eu só queria ser tão sortudo como sou e talvez por isso tento ser boa pessoa todos os dias.
É verdade que não sou perfeito, e às vezes também stresso aqui com os porteiros do prédio quando deixam, mais uma vez, que me roubem o meu tão apreciado lugar de estacionamento, mas também, caramba, eles deixam que isso aconteça todos os dias, ou à hora do almoço, ou à noite ou em ambos os momentos.
Quem me conhece sabe que a simpatia não é uma das minhas melhores qualidades, sou pessoa de respostas curtas e secas mas também não sou antipático de forma gratuita, não trato mal os outros sem mais nem quê, apenas porque apetece ou porque isso possa impressionar os meus amigos e fico triste se vejo alguém destratar outras pessoas.

Não tenho nada para ensinar porque não sei mais nem sou melhor que ninguém mas o meu conselho para ti, triste que me lês, é que se não gostas do que fazes então faz o que gostas. Não julgues os outros pelo que são ou o que fazem, o outro não é pior por ser diferente ou fazer diferente. Faz alguém sorrir, vais ganhar felicidade. Faz um estranho sorrir. Sorri todos os dias.

Eu sei que o JC vos prometeu a todos que do outro lado espera-vos uma vida melhor e é lá que está a felicidade mas é preciso ter presente que há o risco de ele ter mentido, pode não estar ninguém à vossa espera do outro lado, o melhor mesmo é ser feliz aqui agora. Não passes a vida toda apenas à espera da vida toda.

Gandhi uma vez disse ‘não existe um caminho para a felicidade. A felicidade é o caminho’.

Esta é do Dalai Lama ‘Sê gentil sempre que for possível. É sempre possível’.

Até à próxima,
Bernardo Marques.

sábado, 30 de julho de 2011

Hoje dou-vos a conhecer... o Óscar

O Óscar tem sido a minha companhia nestes meses que estive sozinho. 
É ele quem faz com que eu não jante sempre sozinho nem almoce todos os dias sem ninguém. Ele põe-se ali, encostado a uma parede e fica a olhar para mim com aqueles olhos grandes e negros e em troca eu olho para ele com os meus olhos e ficamos assim por largos minutos, por vezes até ele me sorrir.
Vejo-o muitas vezes principalmente durante noite ou de manhã cedo, às 7h estou eu a sair do banho e ele lá está, encostado à parede com o seu olhar atento ou à noite quando me vou deitar lá está ele, interessado...

O Óscar é uma osga e de tão pequeno e frágil é quase transparente. Apesar de o meu colega Miguel achar que as osgas são peçonhentas e que se uma nos tocar ficamos com a pele marcada para todo o sempre nós os dois temos vivido pacificamente, eu não o chateio e ele não me incomoda e penso que nem sequer lhe passaria pela cabeça passear-se em cima de mim enquanto durmo. É bem capaz que ele coma os restos de comida que deixo na cozinha mas eu não me importo porque não estava a pensar comê-los e a casa é suficientemente grande para nós os dois vivermos nela e passarmos dias sem nos encontrarmos. Mas hoje o Óscar passou das marcas, andava eu todo descascado pelo quarto depois do banho matinal quando apanho aqueles olhos a espiar-me... ele estava ali, escondido a ver-me na minha nudez. Eu nem sou muito esquisito com essas coisas nem nada e até tenho um gene exibicionista (a minha Tina que o diga, eu ando sempre a tentar convencê-la a fazer nudismo) o problema mesmo foi o facto de estar a espiar-me escondido, todo camuflado, só se viam aqueles dois olhões negros a ver-me com muita atenção, não estava na parede como antes onde eu o via facilmente, parecia tímido e preverso. Ainda por cima logo à noite o pessoal vem jantar aqui a casa e se ele se põe escondido a espiar vai incomodar os convidados pela certa. As pessoas vão sentir-se observadas sem saber bem porquê. Não quero que ele se habitue a espiar os outros.

Pu-lo fora de casa, expulsei-o. Ele ficou ali, na pedra da varanda todo rijo com o rabo empinado como quem diz ‘És mau mas eu sou pior. Tem cuidadinho, tu és grande mas eu sou peçonhento.’ Não lhe liguei nada e foi apenas uma lição. Hoje a porta fica aberta o dia todo e ele se quiser voltar pode voltar.

Só há uma questão que me intriga e desafia tudo o que conheço do mundo... tenho quase a certeza que há duas semanas atrás o Óscar já tinha pelo menos o dobro do tamanho.
Será que as osgas vão ficando mais pequenas com o tempo, ao contrário de todos os outros seres vivos deste mundo?

Eu volto,
Bernardo Marques






sábado, 2 de julho de 2011

A Tuga em Desgraça



Com as noticias que vou vendo e as desgraças que são anunciadas aí desse lado do equador dei por mim a pensar:
Suponhamos que um tuga ganha, com o seu esforço do dia a dia, mil euritos por mês (já não são todos). No dia em que recebe o dinheirinho das mãos do patrão chega o estado ao pé dele e diz :

estado: - 'eh psst, passa para cá a minha parte.'
tuga:     - 'a tua parte? mas quanto é que é isso?'
estado: - 'eh pá, é coisa pouca, são 11% de segurança social, que é para teres hospitais, escolas e tudo isso que te dá um jeitão e mais 12% de imposto sobre os rendimentos que é para eu poder fazer estradas, jardins, e tudo o que gostas.'
tuga:    - 'ah... bem visto, nem me lembrava disso, mas realmente eu até preciso dessas cenas todas para viver e trabalhar... vai, toma lá 230€.'

Esta pequena conversa acontece já depois do mesmo estado ter ido ao patrão pedir o correspondente a 23,75% (237€) do que ia pagar ao tuga, o que por sua vez terá saído do mesmo esforço do dia a dia (do pobre tuga, não é do estado nem do patrão). 
No final de contas o tuga leva 770€ para casa e o estado leva 467€.

O pobre homem com os seus 770€ não consegue juntar nada e durante o mês gasta tudo o que ganha. 
Em tudo o que ele compra pelo menos 23% vai direitinho para as mãos do estado (IVA) ou seja daqueles 770€ que o tuga levou para casa 177€ vão cair no bolso do estado.
Fazendo bem as contas o tuga, com o suor do seu trabalho consegue comprar bens no valor de 593€ e o estado, do mesmo suor, ganhou 644€ sem ter suado nada.

Ora bem, supondo que o IVA reduzido dos 'bens essenciais' é compensado por muitos outros impostos (bastante elevados por sinal) que ignorei nestas contas (imposto automóvel, petrolífero, SCUTS, etc...) podemos dizer que, genericamente, do suor do trabalho de um gajo o estado fica com 52% e o trabalhador com 48%.

Sou só eu que acho que isto roça o proxenetismo ou o zé povinho é todo muito tonto e deixa-se enganar facilmente?

Suponhamos que a tuga é um país de dois gajos. O Pedro e o Zé. O Pedro trabalha e o Zé governa. Os últimos 30 anos da tuga podem ser contados da seguinte forma:

A cada final de mês:
Pedro: - 'Oh Zé, chega aqui. Olha, já arrucebi o ordenado, toma, 600€ pa ti, pa me governares, 600€ pa mim. Eh lá, mas sobram estas notas? Raios... nunca acerto muito com as contas, fica com elas pa me governares um bocado melhor.

O Zé vai à sua vidinha de governar o Pedro (que consiste em grande parte em não fazer nada e uma outra parte em meter algumas das notas que o Pedro lhe deu no bolso) e vai fazendo o que bem entende com o dinheiro.
O Zé, como governo que é, ainda consegue uns empréstimos para governar melhor enquanto o pobre Pedro tem que fazer a sua vida com o que ganha porque ninguém lhe dá crédito.

Passados alguns anos:

Zé:        - 'Eh Pedro, tamos metidos numa enrascada que nem te conto... desta é que tamos feitos.'
Pedro:  - 'Atão? Mas o que aconteceu? Vá lá, também não pode ser assim tão mau.'
Zé:      - 'Ah não? Olha pá, pedi uns empréstimos para umas cenas e para outras, pa te governar melhor sabes? E agora já devemos 100% do PIB e ainda por cima com os gastos que temos, todos os anos gasto 9% do PIB a mais do que o guito que me dás.'
Pedro:   - 'Estamos feitos? Então tu pedes emprestado agora desenmerda-te. '
Zé:        - 'Desenmerda-te não. Eu sou o teu governo. Tens é que me dar mais algum. Eu consegui aí que uns marmelos (FMI) me emprestassem mais uns 70% do nosso PIB para eu poder pôr as contas em dia. Agora tenho que ganhar mais para pagar a prestação, ou então cortar nas despesas.' 
Pedro:   - 'Então e porque não cortas nas despesas? E que raio é isso do PIB que não percebo nada, nem sei de que valores estamos a falar.'
Zé:       - 'Eh pá, o PIB é uma cena complicada que se calcula com umas contas maradas, mas podemos dizer que é tudo o que tu ganhas mais o que eu ganho durante um ano inteiro e cortar nas despesas está fora de questão, eu faço as leis e a partir de agora tens que me dar mais, vou aumentar aí uns impostos que ainda vamos ver e... olha, lembras-te do subsídio de Natal? Já me dás a minha parte desse, mas se calhar, como é um extra e é, dás-me ainda mais metade da parte que fica para ti.'
Pedro:   - 'Espera lá? Então tu já deves tudo o que nós os dois juntos ganhamos num ano inteiro? Todos os  anos tu gastas tudo o que eu te dou e mais 9% do que nós os dois juntos ganhamos num ano inteiro? Ainda te vão emprestar mais outro tanto para endireitares as contas e eu é que tenho que pagar isso tudo?'
Zé:        - 'Hm... essa é uma forma um pouco redutora de ver a coisa, afinal de contas eu é que nos vou safar desta encrenca... mas sim, é mais ou menos isso.'
Pedro:   - 'Ah, tá bem.'
Zé:        - 'Tá arresolvido.'

Faz sentido?
Será que não precisamos mudar de vida em vez de mudar de governo?

...

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Barcelona Style

Aqui há uns tempos estava eu à porta do escritório, com o Moniz de um lado e o Pedro do outro, os três com o intuíto de iniciar mais um suado dia de trabalho quando passam dois mwangolés.
- "Xê, esse mambo parece mesmo com o Pep Guardiola.", diz um para o outro.
- "Ya, parece mesmo."
Eu olho para um lado, olho para o outro e penso - "Onde raio foram estes gajos ver semelhanças com o Guardiola, nem o Pedro nem o Moniz, nem com muita imaginação se parecem um nadinha que seja com o homem."
- "Olha lá ó Moniz, quem é que parece o Guardiola?"
- "Oh engenheiro, o Guardiola é aquele treinador... acho que é do Barcelona."
- "Moniz, eu sei quem é o Guardiola, não tou é a ver qual de vocês se parece com ele."
- "Não somos nós, é o engenheiro."
- "Ahhh."

Aquilo passou e a minha vida seguiu como sempre uns dias atrás dos outros, até que hoje estava eu na ESCOM a fazer o meu trabalhinho e vira-se um mambo e diz:
- "Desculpa, mas você parece mesmo com o Pep Guardiola."
Estive quase para responder "Ya, tou a preparar o jogo de sábado (a final da Champions)." mas disse apenas "Ah, é capaz, já disseram isso antes."
- "É que tem muitos traços, tem mesmo muitos traços dele."

Dei por mim a pensar...
Quer dizer, antes de vir para cá eu devia andar mesmo maltrapilho, na feira pareço cigano e as ciganas vão perguntar à Tini se ela casou com um deles, em Hong Kong parecia indiano e os indianos vinham falar comigo em Punjabi, na Tunísia não foram poucos os que me vieram falar em árabe para me gabar a conquista de uma moçoila de olhos verdes e em Paris os argelinos cumprimentavam-me mas não cumprimentavam os meus colegas. O que é mau é que nunca pareci um gajo em condições como o Gandhi ou o Saladino só parecia um indiano, árabe ou cigano genérico.

Em Angola sou muito mais bem parecido, não pareço 'um espanhol' pareço o Pep Guardiola.

domingo, 3 de abril de 2011

Parque Nacional da Quissama



Olá,
Eu sou muito preguiçoso e nunca me apetece escrever e é por isso que ainda não vos tinha falado do Parque Nacional da Quissama. Pois bem, eu e a minha estrunflina temos passeado bem menos do que eu gostaria, ainda nos falta ir às segundas maiores quedas de água de África, as quedas de Kalundula do rio Lucala, em Malange,  superadas apenas pelas Victoria Falls do rio Zambeze na fronteira entra a Zambia e o Zimbabwe, ainda nos falta fazer a estrada mais emblemática de Angola, que sobe a Serra da Leba a caminho do Lubango, ir ver a fenda da Tundavala e pelo caminho conhecer o Lobito e Benguela, ainda nos falta ir até às províncias do interior e conhecer outros pequenos sitios como Luena... sim, infelizmente tudo isso e muito mais ainda está por fazer.
Precisamos tirar umas férias e não ir à terrinha (esse país em desgraça mas que todos querem governar) para fazer pelo menos uma parte das viagens.
Voltando ao assunto, de todas estas viagens já fizemos uma, fomos ao Parque Nacional da Quissama. O parque tem pouquinhos animais pois 27 anos de guerra fazem os seus estragos, e uma manhã chega para o visitar. Como tanto eu como a Tini somos bem dorminhocos já fomos tarde, chegámos na hora do calor e por isso não vimos muitos bichos. Só estivemos cara a cara com as girafas e vimos uns pontos negros ao longe que nos disseram ser elefantes. 
Os bungalows do parque são extremamente caros e o Unimog (espécie de camião) em que se faz o safari pelo parque está bastante degradado mas o melhor do parque nem é o safari nem mesmo os animais, é mesmo a vista deslumbrante sobre o rio Kwanza que não vos posso mostrar porque não há fotografia que consiga captar a grandeza daquela paisagem. Infelizmente a minha pobre máquina fotográfica (que desde já vos digo, de tamanho desgosto decidiu, uns dias mais tarde, pôr termo à sua curta vida atirando-se de uma altura de 15 andares) não consegue tirar uma fotografia que alcance todo o campo de visão dos nossos olhos e cada fotografia que eu tirava ao rio era uma desilusão pois nenhuma conseguia transmitir a beleza daquela paisagem. Ainda assim, deixo-vos as fotografias do Parque da Quissama num álbum fotográfico. Dêem uma vista de olhos em https://picasaweb.google.com/bernardo.marques/ParqueNacionalDaQuissama#

Até à próxima,
Bernardo

sábado, 5 de março de 2011

Bolos e bolinhos

Aqui há uns tempos fui comprar uns bolinhos para adoçar o bico à minha Tina.
Entrei na pastelaria, dirijo-me ao rapaz que está na caixa de pré-pagamento e aqui sublinho o facto de ser pré-pagamento e digo:

Eu:       - Bom dia, quero três bolos, por favor.
Caixa:  - Três bolas, é? Três bolas de berlim?
Eu:       - Não, são três bolos mas são outros.
Caixa:  - Quais?
Eu:       - Este, hm... e... hm... este, e...
Caixa:   - Manel, atende aqui este senhor.
Manel:  - Sim?
Eu:       - Quero três bolos por favor.
Manel:  - Quais são?
Eu:       - (Enquanto aponto) Este, este e hm... hm... deixa cá ver... este.

O Manel vira-se para o rapaz do balcão que não tinha mais ninguém para atender e esteve o tempo todo a olhar para nós e diz enquanto aponta:

Manel:  - Olha, são três bolos, este e este e... hm... qual era?
Eu:        - Este.

O rapaz do balcão vai com muita calma buscar uma caixinha, leva o seu tempo para a montar e entretanto o Manel vai atender nas mesas, o rapaz do balcão mete um bolo dentro da caixa e pára. Eu espero enquanto olho para ele, ele olha para mim enquanto espera... eu pergunto-me de que estaremos à espera, ele também deve perguntar algo a si próprio, mas eu não sei o quê, continuo à espera e ele continua à espera. Até que aparece o Manel e o rapaz do balcão pergunta:

Balcão: - Quais são os bolos do senhor?
Manel:  - Este, este e... hm... qual era?
Eu ainda estou atordoado por ter estado aquele tempo todo à espera que o Manel nos viesse dizer quais eram os bolos que eu queria... mas digo 'Este aqui' enquanto aponto para o bolo que faltava.

Uma pessoa normal já fica a pensar 'poxa... até parece que não falam a mesma lingua' mas a história não acaba aqui. O Manel vira-se para o rapaz da caixa e diz:

Manel:  - Olha, foi um bolo destes, e... hã... hm... acho que outro destes... e... hm... 
Caixa:   - São três de 'pastelaria diversa', não é?

Tudo seria tão facil se eu soubesse dizer logo à partida que queria três de 'pastelaria diversa'.

Até outro dia,
Bernardo.

Incongruências do mundo real


Imaginem que um de vocês que vivem na metade de cima do mundo, vai um dia ao cinema ver um qualquer filme... nesse filme aparecem cenas estranhas como um senhor muito janota e finório, com ar de ser bastante endinheirado a ser deixado pelo seu motorista na porta do edifício onde vive, o mais podre e velho que vocês alguma vez viram, com as paredes exteriores e interiores todas graffitadas com gatafunhos ilegíveis, num bairro cheio de buracos com esgotos sem tampa que jorram água negra e perfumada para a estrada, a entrada do edifício em terra, cheia de poças de água criadas pelo constante gotejar de dezenas de tubos pendurados de ares condicionados. Os vizinhos desse senhor vivem no mesmo edifício e alguns não têm motorista mas no estacionamento os veículos fazem inveja às melhores garagens onde cada veículo quer ser maior que todos os outros, Porsche Cayenne, Land Cruiser Prado, Ford F150, Toyota Tundra, Chevrolet Avalanche entre outros gigantes.
Umas cenas depois aparece um jovem, que vive numa barraca no meio do lixo onde não tem água canalizada e luz só de vez em quando mas aparece a jogar na sua Playstation 3. Uma senhora, mãe solteira, que trabalha para ganhar uns 400 dólares americanos compra uma bicicleta, uma PSP e uma Playstation3 como presentes de Natal para o seu filho de sete anos de idade e compra um computador portatil para sí, tudo no mesmo Natal.
Penso que qualquer um de vós, ainda a meio do filme vai dizer 'duh... acho que desta vez o Woody Allen se passou demais, onde raio foi ele buscar estas ideias?'.

Pois bem... basta vir até esta metade do mundo e olhar um pouco pela janela para ver este filme.

Até à próxima,
Bernardo

sábado, 15 de janeiro de 2011

Música de Angola

Ao contrário da Tuga onde a maior parte da música que se ouve é importada aqui em Angola, onde tudo é importado, a música nacional está de saúde e recomenda-se. Podemos ouvi-la a sair das ximbungas, das muitas festas que se fazem por todo o lado ao fim de semana e as rádios também passam quase exclusivamente músicas feitas por cá. Escrevo para vos dar a conhecer algumas (poucas) delas.

Yuri da Cunha - Kuma Kwa Kié - música cantada língua Angolana que penso ser 'kimbundu', mas que, caso esteja enganado, também pode ser 'fiote'.
Pérola - Omboio - música cantada em 'umbundu', língua originária da região do Huambo.
Puto Português - Tá male - muitas das músicas angolanas falam de situações do dia a dia e dos problemas vividos pelo pessoal, esta é uma delas... vale a pena fazer um esforço para perceber a letra porque é o ponto forte das músicas daqui. Ele fala em 'zungueira' que é o nome dado às senhoras que vendem coisas na rua, que por norma carregam numa bacia que levam na cabeça e têm também quase sempre um pequeno nas costas.
Gisela Silva - Vou xinguilar - 'xinguilar' é algo parecido com endoidecer. Para perceberem um pouco do que a rapariga diz convém saber que aqui neste lado do mundo quando um jovem pretende casar com uma 'palanquinha' tem que fazer o 'pedido'. Para esse pedido o jovem pretendente tem que fornecer um certo número de grades de bebidas diversas, o 'alambamento', roupa para os pais, tios e tias da noiva entre outras coisas que por norma são definidas pela família da noiva.

As próximas duas músicas são de duas boas campanhas publicitárias que passam na televisão pública com o objectivo de sensibilizar a população:


A última é uma música tuga mas tem boas imagens de Luanda e a participação do Puto Prata que é angolano:

Até breve,
Bernardo.