segunda-feira, 24 de setembro de 2012

'Isso é uma paca.'

Quem vai do Waku Kungo para o Dondo, porque se enganou numa qualquer estrada e queria era ir parar a Catete, passa por uma série de pequenos kimbos e vai vendo pessoal a vender peixes e animais de caça na beira da estrada, como em muitas outras estradas de Angola. A mim também aconteceu e ia a passar por um desses kimbos quando digo:

- 'Olha ali um gajo a vender um coelho, queres um coelho?'
- 'Não é nada um coelho pá, é outro animal qualquer, mas não é um coelho.' - diz o meu companheiro de viagem.
- 'Ah, pois... aquele não tinha orelhas.'

Uns quilómetros à frente estamos a passar por um outro vendedor de beira de estrada e digo eu:
- 'Eh pá, agora vou passar devagarinho, vê lá se não é um rato gigante que o men está a vender?'
- 'Não, não é um rato.'
- 'Caramba, o próximo bacano que vir a vender um rato vou parar e perguntar que bicho é esse.'

Andámos mais uns quilómetros valentes até que numa aldeia estava um miúdo na beira da estrada com um coelho-rato nas mãos para nos tentar a parar e comprar o bicho. Eu parei.

- 'Eh puto, diz-me lá que bicho é esse.'
O miúdo ficou a olhar com um ar bué estranho, e eu do alto da minha arrogancia achei que o pequeno talvez  não falasse português, mas ataquei de novo.
- 'Miúdo, eu não te vou comprar esse bicho porque não me ia amanhar a esfolá-lo nem a desmanchar a carne, mas dou-te 200 paus se me disseres o nome desse animal que queres vender.'
O puto, com ar de quem acha bué esquisito que alguém não saiba as coisas básicas da vida e até com uma pintinha de desprezo na voz por ver alguém tão crescido mas tão ignorante diz:
- 'Isso? Isso é uma paca.'
- 'Hã? Páca? é uma páca?'
- 'Hm hm.'
- 'Olha, mereces os 200 paus, deixa cá ver... eh pá, hoje é o teu dia de sorte, não tenho notas de 200 por isso vou ter que te dar esta de 500 paus.'
Ele ficou todo contente e eu continuei.
- 'Puto, diz-me lá mais uma coisa, quanto é que custa uma paca?'
- 'Quê?'
- 'Quanto é que tu estás a pedir pela paca?'
- '1700 Kz.'

Ngombo com a sua paca

Nisto apareceu um bacano mais velho, com uns vinte e alguns anos que não sei se era pai ou irmão do puto e diz:
Grande - 'Tá a faltar aí.'
Puto     - 'Não.'
Grande - 'Tá a faltar, não tá aí todo.'
Puto     - 'Ele não vai levar.'

Eu reparei que o mais velho tinha um arco (sim um arco daqueles de lançar flechas).
- 'Xê, és tu que caças as pacas?'
- 'Sim.'
- 'Com esse arco? Atiras uma flecha e acertas na paca?'
- 'Ya, assim.' - esticou a corda do arco e largou.
- 'Pôxa, posso tirar-te uma fotografia?'
- 'Podes.'
- 'Caramba, tu vais ali para o mato e a paca vai a passar no meio das ervas, tu atiras uma flecha e acertas-lhe?'
- 'Ya.'
- 'Isso é espantoso.'

O caçador de pacas com o seu arco e flechas


Tirei umas fotos e quando me estava a despedir do pessoal que estava ali perguntei:
- 'Eh puto, qual é o teu nome?'
- 'Ele é o Ngombo.' - disse o mais velho.
- 'E tu vives aqui na aldeia, é Ngombo?'
- 'Sim.'
- 'E onde é a tua casa Ngombo?'
- 'É lá em baixo.'

Eu tenho bué curiosidade de ver uma daquelas casas por dentro, de ver o que eles têm lá, e quase de certeza que eles me deixavam ver... mas achei que seria um nadinha abusador e como a casa era lá em baixo e não logo ali só disse para o mais velho:

- 'Ah... é lá em baixo?'
- 'Ya.'

Foi só depois de entrar no carro e arrancar que me lembrei de tudo o que esqueci. Eu tinha dois pacotes de bolachas, um de batatas fritas e vários de rebuçados no carro que eram do Ngombo mas eu esqueci de lhos dar. Esqueci de perguntar aquela gente como era a vida, o que achavam de viver ali e se eram felizes. Aquela aldeia não tem luz (nenhuma, nem pública nem nas casas), não há electricidade, não têm água nem esgotos, não há gás... Eu nasci num tempo em que já não sabemos viver sem esses luxos que se tornaram necessidades, não sei como é viver sem electricidade, sem saneamento e sem um fogão... como se cozinha? toda a gente acende uma fogueira todos os dias?
Gostava de saber o que eles pensam da vida quando vivem em condições nas quais, segundo os padrões daí da parte de cima do mundo, faltam as necessidades mais básicas. E uma vez que na parte de cima do mundo as pesoas andam um pouco agastadas com a vida e descontentes deveria ter tentado descobrir como se sentem as pessoas que vivem ali.

Acho sinceramente que já vai sendo tempo de alguém inventar uma forma objectiva de medir a felicidade. Nos dias de hoje em que já podemos medir o peso e saber quão gordos ou magros somos, medir a altura e saber se somos grandes ou pequenos já era para podermos medir a felicidade e tal como poderia perguntar ao Ngombo quanto calça para saber se tem os pés grandes poderia também perguntar quanto felicia para saber se o rapaz é mais feliz ou mais triste. E ainda que não houvesse uma forma objectiva de medir a felicidade já devia, pelo menos, alguém ter inventado uma forma subjectiva de a medir, tal como inventaram o Q.I. para medir a inteligência podiam inventar um Q.F. para medir a felicidade... eu próprio já o teria feito, não fosse o pequeno inconveniente de não saber quais as perguntas certas para colocar no teste, mais dificil ainda seria descobrir as respostas certas. Peço a um de vocês que por favor arranje forma de medir a felicidade.
Com o medidor de felicidade nas mãos poderei saber se são aquelas pessoas sem nada mais felizes ou mais tristes que as daí de cima que, ainda que não tenham tudo, não se dão conta de quanto têm.

Durante a viagem decidi que um dia vou experimentar, um dia que não vem longe vou viver numa daquelas aldeias de casas de tijolo de barro com telhado de colmo (não gosto das aldeias com casas de telhado de chapa) durante uma semana, vou pagar para ir trabalhar (ou atrapalhar) com eles, seja no campo ou na caça e vou acordar, almoçar, jantar, conversar e dormir com eles e um dia vou saber como se vive na África verdadeira sem nada a não ser dois bracinhos e duas perninhas para fazer a vida e talvez escreva aqui sobre a experiência.

Espero que não seja tarde de mais para que um dia alguém me pergunte o que quero ser quando for grande (ou pelo menos maior, ou talvez mais velho) e eu possa responder que quero ser explorador. Quero ir de Luanda a Maputo, de Maputo a Mombasa, de Mombasa a Yaounde e de Yaounde ao Cabo, de carro, de bicicela ou a pé e pelo caminho parar e conhecer as pessoas, demorar 10 anos a fazer a viagem, mas conhecer e ser explorador.

Hoje deixo-vos com uma música de uma das minhas bandas favoritas... dêm uma ouvidela aqui.

Cause it's my intention
to not let the good life
and good times pass me by

P.S. - isto de ser explorador é apenas um estado de espírito. Um lingrinhas como eu morria de fome e sede dois dias depois de deixar a civilização.


...

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Velocidade Terminal



Aceleração:   9,81 m/s2

Uma aceleração de 9,81m/s2 significa que, a cada segundo que passa a velocidade aumenta 9,81 m/s o que é quase o mesmo que dizer que aumenta 35 Km/h por cada segundo. Esse é o valor da aceleração da gravidade terrestre, uma força que é exercida sobre nós, durante todo o tempo, pelo nosso querido planeta.

Altitude:     4300 m
Quando subimos a 4300 m de altitude (de avião) e decidimos saltar cá para baixo em queda livre a aceleração da velocidade a que caímos é essa, em menos de 3 segundos já vamos a 100 Km/h e depois disso a força exercida pela resistência do ar faz com que a velocidade aumente mais lentamente até chegar quase aos 200 Km/h.

Velocidade:   200 Km/h
 Esta é a velocidade terminal para um ser humano que cai de barriga com braços e pernas esticadas. A resistência do ar exerce uma força contrária à da gravidade e aos 200 Km/h esta faz com que a velocidade a que caímos deixe de aumentar.

Duração:      1 minuto
Em menos de um minuto já descemos até aos 1500 m, altitude à qual o para-quedas é aberto e tudo se torna mais calmo, suave e relaxado apesar de, ainda assim, ser um nadinha assustador para quem pela primeira vez tira os pés do chão.



Nestas férias deu-me para voar, já antes vos tinha dito que queria voar e uma vez que tudo o que voa corre sérios riscos de, mais tarde ou mais cedo, acabar por cair achei por bem que deveria aprender a cair antes de aprender a voar.
Fui até ao aeródromo de Braga onde, após 5 minutos de instrução na qual me disseram que deveria agarrar-me aos ombros, com a cara voltada para o lado e as pernas dobradas para trás, pude cair do cimo do céu. Isto é tudo o que precisamos saber para podermos saltar com um marmanjo amarrado às costas. Depois de esperar um pouco fomos para o pequeno avião que nos levou até ao cimo dos céus de Braga, é excelente ver o mundo lá de cima , de dentro de um avião pequeno com bué vidro em que a vista de um mundo pequeno abarca quase todo o nosso campo de visão... depois de uma subida de uns 10 ou 15 minutos a porta abriu-se e eu e o marmelo que levava às costas arrastá-mo-nos para o lado de fora. Eu na posição que tinha aprendido na instrução e ele em cima de uma pequena plataforma perto da asa.
Quando estamos ali, assim pendurados no ar, na asa de um avião que está a voar, a adrenalina sobe, as endorfinas começam a atacar o cérebro e... não sei o resto porque não percebo nada de hormonas mas sei bem que ficamos alterados, mas enquanto estamos na nossa posição natural temos a noção que o mundo está lá em baixo e o nosso olhar no horizonte, como acontece durante a maior parte da vida e até aí é tudo normal, ou quase. Estamos assim por uns segundos até que o emplastro que levamos nas costas, sem qualquer aviso e sem que saibamos quando o vai fazer, se inclina e começamos a cair. É nesse momento pelo qual esperávamos mas do qual ainda não estávamos à espera que sentimos um imenso cagaço, pelo menos na primeira vez suponho de deve acontecer a toda a gente, e por mais que quiséssemos ou gostássemos de fazer uma cara bonitinha naquele instante,  para ficarmos bem na fotografia, isso não é possível. A partir do momento em que ele se vira deixamos de controlar o nosso rosto.
Não é possível eu dizer-vos o que se sente naquele momento, quando nos sentimos cair a uma velocidade estonteante, sem nada debaixo de nós mas vou tentar explicar o melhor que sei.
Quando nos viram os olhos para a terra e notamos que deixámos de ver o horizonte para vermos apenas o mundo inteiro bem ali, à frente dos olhos, aquilo que se sente é que já caímos demais, o nosso espírito não conseguiu acompanhar a queda e ficou ali, na asa do avião, esqueceu-se de vir connosco e daí sentirmos uma impressão no peito, uma quase dor, como se nos esmagassem o peito, como se a vida nos fugisse ou nós fugíssemos dela. Felizmente o nosso espírito não demora mais do que umas centésimas de segundo para reparar que nós já fomos e depressa volta para dentro do peito, passa aquela quase dor e aí damos-nos conta do que está a acontecer. Estamos a cair a uma velocidade alucinante de uma altura imensa e apercebêmos-nos de que certamente iremos morrer e ainda por cima o anormal que levamos em cima inclina-nos para que viajemos mais depressa vá-se lá saber porquê. Tão rápido quanto o nosso cérebro, que naquele momento não está a funcionar a 100%, se lembre que o gajo que vai em cima de nós tem um para-quedas que nos vai permitir sobreviver à queda o medo passa e podemos apenas apreciar o momento... sentimos o ar empurrar-nos para cima e não vemos o mundo aproximar-se nem um bocadinho, tudo continua igual, lá no fundo, afinal... se calhar... estamos a voar, vamos poder ficar ali no ar o tempo que quisermos, a voar como se fossemos um pássaro ou um insecto, só com mais vento na cara, tanto que por mais que tentemos não conseguimos mudar a nossa expressão facial, tanto vento que nos empurra os braços para cima, as pernas para cima, a partir do momento em que abrimos os braços deixamos de controlar os movimentos, já não controlamos o rosto, nem os braços, nem as pernas é o vento que nos domina, quem põe os braços na posição que ele quer e as pernas, é ele quem nos dá forma ao rosto... e é justamente quando estamos a apreciar mais aquele voo, quando já estamos a curtir à brava o facto de estarmos a cair e já nem sequer parece tão mau assim se por acaso nos encontrarmos com o solo que o estafermo abre o para-quedas e acaba com a diversão. Sentimos um puxão forte e de repente o mundo já está outra vez lá em baixo e os olhos conseguem ver o horizonte, passamos a descer em silêncio, numa viagem muito mais calma mas ainda assim sentimos-nos fragilmente presos pelos ombros e o mundo ainda bem lá em baixo e ficamos com um pouco de receio de que possamos cair. Vamos descendo devagar até começarmos a ver as árvores aproximarem-se e dá a sensação que vamos bater com os pés num telhado, ou na copa de uma árvore (isso talvez seja só eu porque tenho umas pernas compridas) e parece-nos que afinal estamos a descer depressa demais e... quando damos conta já temos chão debaixo dos pés de novo e a viagem acabou... mas é alucinante, uma viagem extraordinária, isso vos garanto.

Para aqueles de vocês que um dia queiram experimentar podem ir até www.syfuncenter.com.
Um bacano muito porreiro saltou para filmar, podem encontrar um pedaço do filme em  http://www.youtube.com/watch?v=1VLqrxlCCfE, não esperem que eu tenha ficado bonitinho e não estranhem caras de assustado ou de anormal, como disse, as expressões faciais estavam completamente fora do meu controlo.
Encrontram algumas fotos em https://picasaweb.google.com/117986880837828270606/SaltoTandem.

Em conversa com aquele jovem que vêem saltar às minhas cavalitas vim a saber que ele tinha estado em Angola e tinha chegado à tuga há apenas alguns dias. Em breve irá voltar pois estava a criar, ou a dar formação, ou a iniciar o clube de paraquedismo aqui em Angola.

Hã? Quê? Perguntas se o vou fazer de novo?
Podes ter a certeza que sim.

Bernardo.