Hoje conheci alguém que verdadeiramente me impressionou, desta vez,
ao contrário de quando o disse no texto que escrevi há uns dias, digo-o sem qualquer sarcasmo na voz.
Durante o curto tempo que já vivi não foram
muitas as pessoas que me impressionaram de verdade. Não me consigo lembrar de
muitas mas também é natural, eu não ando aí pela rua a tentar impressionar os
outros e, como tal, tomo como natural que os outros não andem por aí a tentar
impressionar-me mas por vezes acontece quando não estamos nada à espera.
Lembro-me
de um indiano que numa manhã de Maio de 2006, numa rua de Hong Kong, me
confundiu com alguém conhecido e me falou em híndi (ou numa qualquer outra das restantes
21 línguas oficiais da Índia) e quando viu o meu olhar de estranheza lá me
perguntou em Inglês se eu não era Indiano. Disse-me que eu era deveras parecido
com um grande amigo dele. Sentei-me num banco de jardim com o homem e enquanto
conversávamos ele escrevinhou umas coisas num papel e disse que tinha
um dom. Dobrou o papel, pôs-mo na mão, pediu-me que a fechasse com força e
a mantivesse bem fechada, depois foi fazendo perguntas:
- ‘como te chamas?’ – ‘Bernardo.’
- ‘que idade tens?’ – ’28.’
- ‘e de onde és?’ – ‘ de Portugal.’
- ‘és casado?’ – ‘ah, nunca assinei nenhum papel, nem nunca
se fez nenhuma festa, mas sim, vivo com uma rapariga por isso acho
que sou casado.’
- ‘e qual é o nome dela?’ – ‘ora, é um nome português, se eu
o disser digo-o em português e o mais provável é que não percebas.’ – ‘está
bem, mas diz-me o nome dela.’ – ‘Cristina.’
- ‘se tivesses um desejo que se pudesse tornar real, apenas
um, qual era a coisa que mais querias neste mundo?’ – ‘oh, eu sou uma pessoa simples
e o que quero é apenas ser feliz, não preciso ter dinheiro nem viajar, não quero
ser importante nem ser influente, não quero ser rico nem quero ser famoso,
quero apenas ter uma vida feliz.’
- ‘Diz um número entre um e dez’ – ‘sete.’
- ‘Abre a mão e vê o papel.’
O pequeno farrapo de papel que aquele desconhecido me deu
para a mão, antes de eu lhe ter dito qualquer uma daquelas coisas, depois de
desdobrado revelou ter escrito ‘Cristina’, ‘Happy Life’ e ‘28’.
Ele lá explicou que o 28 era a minha idade, Cristina o nome
da minha mulher e Happy Life o meu desejo. Disse-me que 2007 seria o meu ano de
sorte, daí eu ter escolhido o número sete, e que eu iria ganhar uma fortuna nesse
ano e ele estava tão convencido disso que num outro papel escreveu o seu nome,
Gulzar Singh, e o número de telefone dele na Índia. Mostrou-me umas fotografias
de uns rapazes com diferentes deficiências e disse-me que na Índia ele dirigia
um mosteiro onde acolhiam crianças desfavorecidas. Pediu-me encarecidamente que
quando eu ficasse rico (no ano seguinte, 2007) não me esquecesse dele e fizesse
uma contribuição para a instituição. Eu como céptico que sou nestas coisas
místicas disse: ‘eu prometo que não me
esqueço de ti e no dia em que a sorte me abraçar vou partilhá-la contigo, mas
explica-me como raio fizeste isso?’ ao que ele apenas respondeu ‘Nós os
indianos temos um dom.’ e foi embora.
Olhei de novo para o papel e o facto de estar ali escrito ‘Cristina’
no meio de um quadradinho de papel, sentado num banco de jardim de Hong Kong onde a maioria
do pessoal nem sequer fala uma língua que se perceba, caramba fiquei
abismado e as 8 horas de diferença para a tuga, que faziam com que fossem 3 da
manhã para a Tini, não me impediram de lhe ligar para contar o que tinha
acontecido. Não mais me separei daqueles quadradinhos de papel e se bem que
raras vezes me lembro disto ainda hoje os tenho comigo (aqui em Luanda).
Apesar de ter jogado umas duas ou três vezes no euromilhões no ano de 2007 a verdade é
que não me saiu e o pobre Gulzar nunca mais me viu ou ouviu falar de mim nem do
meu dinheiro, mas caso ele tenha mesmo um dom e só se tenha enganado no ano eu
tenho o número de telefone dele.
Houve outras pessoas que num ou noutro momento da vida me
conseguiram tocar na alma e deixar marca para a vida mas voltando ao dia de
hoje... hoje fui ao Kero às compras com a Feliztini (mudei o nome dela há uns
dias) e fizemos muitas compras cansativas e tudo o mais e andámos às
turras um com o outro por causa dumas makas com a carne e com a moça carniceira.
Quando estávamos a chegar com as compras ao carro, amuados um com o outro
aparece uma pequena... não sei que idade terá ela (aqui nem sempre é fácil saber
a idade duma criança apenas tirando-lhe as medidas, um miúdo mal nutrido pode
ter metade do tamanho que devia) mas aparentava uns nove anitos, era muda e
muito provavelmente também surda e fazia uns sons acompanhados pelos gestos que
faziam com que a entendêssemos.
A primeira coisa que disse, passando a mão à
frente da cara seguida por um sinal de fixe com o polegar e apontando para mim,
era que eu sou um gajo bonitinho, como a Feliztini não percebeu ela repetiu
mais duas vezes até que eu traduzi os gestos em palavras (agora que penso
melhor se calhar a rapariga não é surda). Se descontar a minha avó e a minha
mãe ela é uma das três ou quatro mulheres que alguma vez me disseram que sou
bonitinho por isso fiquei logo a gostar daquela pequena. Depois fez um montão
de gestos para nos explicar que estava ali para nos aliviar da entediante tarefa
de colocar as compras dentro do carro e embora não tivesse tamanho para
conseguir tirar os sacos do carrinho de compras nem para os colocar mais longe
do que a porta da mala do Jimny começou logo a arrumar as tralhas que tenho
sempre na pequena mala do carro. Exigiu que lhe déssemos para as mãos todos os
sacos e sempre com um sorriso enorme no rosto e uma alegria contagiante lá foi
pondo os sacos dentro do carro. Quando acabou a tarefa ainda fez um gesto
passando a mão em frente do corpo todo seguido de um sinal de fixe e apontando
para a Feliztini que eu interpretei como sendo um sinal de que ela se veste
bem. No fim a Feliztini deu-lhe um pacote de bolachas de chocolate e 500Kz e
fomos embora enquanto ela nos acenava.
Ia no carro a caminho de casa e o sorriso
daquela pequena que nada tem, não consegue falar e tem que ir para o parque do
Kero para ganhar algum dinheiro aos nove anos não me saía da cabeça... baptizei-a
na minha mente de ‘sorriso chocolate’.
Eu já vos disse que sou feliz, mas a mim a vida deu-me tudo
o que precisava para ser feliz, para dizer a verdade deu-me bem mais do que
eu precisava para ser feliz, muito mais do que preciso para viver e muito provavelmente
bastante mais do que mereço. É bem possível que por cada euro que aquela
pequena consegue eu consiga cem, já fiz algumas viagens e conheci outros mundos,
por cada metro que ela já se afastou de sua casa é possível que eu tenha
viajado quilómetros...
Nesta vida sou feliz mas numa outra vida, na próxima vida eu
quero ser um sorriso chocolate, quero não ter nada e ser alegre, quero não ter
nada e sorrir, quero não ter nada e conseguir alegrar tontos que tudo têm e andam
carrancudos. Quero não ter nada e conseguir ser feliz.
Tenho pena de não andar sempre com a máquina fotográfica
pois se a tivesse hoje de certeza que no cimo deste texto estaria um grande
sorriso escarrapachado, um sorriso de dentes brancos que vos iria proibir de
andar tristes ou carrancudos.
A existir um deus, imagino que se ele quisesse enviar um
anjo para acordar uns tontos do sono em que vivem, esse anjo seria aquela
pequena. Pena é que eu saiba que não demoramos muito para que o torpor volte e faça com que nada façamos para tentar mudar um pequeno pedaço do mundo que seja.
Ainda no início da viagem para casa, mal tínhamos saído do parque
do Kero quando a Feliztini diz: ‘ ‘Tenho
tanta pena daquela pequena, este mundo é tão injusto, apetecia-me levá-la
connosco e ajudá-la.”
Ao que eu respondi: “Sim, num mundo um pouco mais justo
ter-lhe-íamos pelo menos perguntado quanto é que ela precisa de levar para casa
quando vai para ali pedir... se calhar ela vai lá apenas para ganhar mil
kwanzas e devíamos pelo menos dizer-lhe ‘olha, vai para a escola estudar que eu
dou-te mil kwanzas todos os dias’, mil kwanzas por dia nós nem notávamos e para
ela poderia ser a diferença para ter uma vida melhor.”
Uma lágrima ficou ali no canto do olho e ao olhar para o lado vi que no rosto da
Feliztini já corriam umas quantas.
É pena que o egoísmo seja algo intrínseco de todos os seres,
agarramo-nos demais aquilo que pensamos ser nosso, a verdade é que cada um
apenas pensa em si e de vez em quando naqueles que ama e todos nós temos um
sentimento de posse muito forte do qual é muito difícil que nos libertemos. A
minha comida, a minha casa, o meu dinheiro, as minhas coisas. Mesmo tendo mil
vezes mais do que aquela pequena não demos mais do que migalhas que nenhuma
falta fazem, apenas damos aquilo que não custa perder. Em que mundo se pode
permitir que alguém tenha mil vezes mais do que outros? Num mundo onde
milhões de pessoas têm mil vezes mais do que eu e há biliões que têm mil vezes
menos. Neste mundo, a viver num local onde o respeito pelo outro parece que nem sempre é importante por vezes dou por mim a pensar que até tenho um coração bom apenas porque deixei uns pequenos que vêm da escola atravessar a estrada e eles me agradecem sorridentemente mas caramba, para deixar pequenos atravessar a estrada nem coração é preciso ter, basta que se tenha uma consciência.
É óbvio que sei que a escola aqui provavelmente de pouco
servirá a alguém que é mudo e possivelmente surdo, é possível também que se ela
tivesse mil kwanzas preferisse ganhar outros mil em vez de ir à escola... mas pelo
menos eu teria feito algo.
Quando voltar lá vou procurar aquela pequena, tentar dar-lhe
algo mais, não sou a Madre Teresa e é muito provável que não seja eu a mudar a
vida daquela pequena, ela não consegue falar e nós não a conseguimos perceber,
nem sequer o nome dela conseguiremos saber, mas eu gosto dela.
Antes de deixar este mundo espero um dia poder tocar na alma
de alguém e deixar marca, espero fazer algo por uma pessoa que não conheço,
algo que esse alguém nunca esqueça e que faça realmente a diferença.
Algo que
me custe mas que seja bom.
Será que já ganhei a fortuna que o Gulzar Singh previa?
...
Acompanho o teu blog. E hoje fizeste-me chorar com as tuas palavras. De facto somos muito egoistas. Eu sou egoista :( cada vez pensamos mais no dinheiro e naquilo que ele pode comprar.
ResponderEliminarComo diz o principezinho "só se vê bem com o coração, o essencial é invisivel para os olhos"
Grande história. Tocou-me.
ResponderEliminarE confesso que depois de uns anos nesta terra já não é fácil "tocarem-me"...
Obrigado pelo relato.
Ainda nao li daqui para a frente mas se algum dia encontrares a "Sorriso Chocolate" não deixes de escrever como foi :)
ResponderEliminar:) Já a encontrei umas vezes mais. Já não a vejo há muito tempo (largos meses, talvez há mais de um ano) porque já não vamos ao Kero. Das duas ou três vezes que a voltámos a encontrar ela fazia sempre uma festa e teve um ou outro dia em que levou mais do que conseguia carregar de volta para casa ;). Um dia destes tenho que voltar a ir às compras ao Kero.
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